Jaime Nogueira Pinto: "O 'Je suis Charlie' não contribuiu para coisa nenhuma"

RR online 14-05-2015 10:47 por José Pedro Frazão

Especialista em relações internacionais lança um livro que percorre as origens da discórdia entre o "Ocidente" e o "mundo islâmico". Prevê um choque frontal. 
A História tem uma história. Jaime Nogueira Pinto, um assumido homem de direita, acaba de lançar um livro onde sublinha o rasto das sombras que ficaram do que resta de dois mundos que, teme o professor de Relações Internacionais, estarão prestes a chocar em grande estilo. 
O autor de "O Islão e o Ocidente" (edição D. Quixote) rebobina as linhagens da discórdia, explicando de onde vêm e para onde parecem ir, no rescaldo de um atentado em Paris que divide atenções com a emergência de um califado carregado de sangue. 
Quando se encontrarem, assegura Nogueira Pinto, numa qualquer espécie de frente-a-frente final, não vai ser bonito de se ver. A entrevista foi emitida esta semana na Edição da Noite da Renascença, o livro é apresentado esta quinta-feira às 18h30 na Câmara de Comércio e Indústria, em Lisboa.
No fim do seu livro evoca a expressão "choque de civilizações" porque teme que venha a acontecer. Não é ainda uma realidade, mas defende que se caminha para lá. Porquê?
Por causa de todas as circunstâncias humanas. Por intenção de uns e ignorância ou estupidez de outros, estamos a deixar resvalar esta relação do mundo ocidental – antes diríamos ocidental e cristão, hoje tenho algumas dúvidas que se possa aplicar isso – com o mundo islâmico para algo cuja imagem gosto de descrever como de "espelhos distorcidos". Corremos o risco de a grande maioria do mundo islâmico corporizar o Ocidente numa linha de laicismo agressivo e anti-religioso, do tipo "Charlie Hebdo". E corremos o risco de, no Ocidente, a imagem do islão cada vez se aproximar mais dos grupos jihadistas radicais e agressivos como o Daesh [o autodenominado Estado Islâmico] ou a Al-Qaeda. 
Esse cenário passa mais pela responsabilidade do Ocidente pela forma como está a gerir este processo altamente complexo de diálogo com o mundo muçulmano?
O passado é importante para perceber estas coisas. Há de facto um acumular de ressentimentos, nuns casos justificados e noutros menos, daquela "nebulosa gigantesca" que é o mundo islâmico. Que não é só o Médio Oriente árabe e o Magrebe islâmico, mas vai também até ao Paquistão e à Indonésia. Por várias razões, que vão desde os impérios coloniais holandês e britânico até ao Médio Oriente árabe e Norte de África, esse mundo tem toda uma linha de exploração de formas militares ou financeiras. A partir do momento em que o Império Otomano entrou em decadência, os poderes imperiais europeus, de certo modo, valeram-se sobretudo da sua superioridade militar e tecnológica, e depois da sua capacidade financeira industrial, para, de certo modo, explorarem essas áreas. Fizeram-no por vezes de forma brutal. Falo com alguma demora do Acordo Sykes-Picot entre ingleses e franceses, nos finais da Grande Guerra [N.R.: acordo secreto que levou ao desmembramento do Império Otomano]. Tudo aquilo que T.E. Lawrence tinha prometido aos hachemitas para se revoltarem contra o império turco foi traído. Há uma experiência nestes povos de uma certa traição ou engano por parte das potências ocidentais. Isso foi explorado por diversas gerações e classes políticas. Desde os movimentos laicos, socialistas e militares como o Baath ou os jovens oficiais nasseristas, até outros movimentos por exemplo na Argélia. Agora, é um dos pontos centrais deste movimento de jihadismo radical, da Al-Qaeda ou do Estado Islâmico. 
Mas o "choque de civilizações" não é uma expressão de 2015. Isso foi sendo ciclicamente falado sobretudo naquilo que classifica como a "guerra das sombras", esta primeira década do século entre 2001 e 2011. Muito a propósito do que a Al-Qaeda foi fazendo no seu confronto com o mundo ocidental.
Sim. Não há dúvida que as lutas no seio do islão e do Ocidente – esse Ocidente até certo momento é mais a cristandade, sobretudo a católica – são muito mais importantes que essas confrontações que acontecem ocasionalmente. Aconteceram nas Cruzadas ou a seguir à tomada de Constantinopla pelos turcos, prolongando-se pelos séculos XVI e XVII no Mediterrâneo. De um modo geral, as lutas entre estados europeus (França, Casa de Áustria, Inglaterra) são muito mais importantes, significativas e continuadas do que propriamente essa tal "guerra das civilizações". Aqui estamos mais a falar de um movimento que tem a ver com a decadência do império turco. O império otomano era de facto a grande potência islâmica. Quando ela entra em decadência, os europeus (ingleses, russos, franceses e, mais tarde, os próprios espanhóis) precipitam-se sobre essas áreas e procuram tirar daí o máximo de vantagens. 
É curioso que o modelo turco tenha sido o desejado ou pensado para o futuro daquelas "primaveras árabes".
Sim. É um estado confessional, ao fim de várias décadas de domínio dos laicos militares, herdeiros de Ataturk, de uma linha até hostil em relação à influência da religião na política. O Partido da Justiça, religioso, ganhou as eleições e teve um grande sucesso na parte económica. Levantou a Turquia e faz dela um estado poderoso. Curiosamente, neste momento, encarna alguns aspectos do antigo Império Otomano... 
Sobretudo na influência diplomática.
Erdogan, a dada altura, encontra-se com os egípcios e toma partido de forma activíssima contra o governo sírio de Assad. Procura, de certo modo, retomar aquilo que, no passado, a "Sublime Porta" tinha sido para o mundo islâmico, uma espécie de tutela [N.R.: "Sublime Porta" era o sinónimo do próprio Império Otomano]. É curioso, é um dos tais fenómenos de repetição histórica. Curiosamente, o "califado" foi oficialmente abolido por Ataturk em 1924, já sem a Turquia-império mas com a Turquia-nação. 
A Turquia é a chave para resolver este problema?
Não sei se é. Hoje, isto foi completamente esfrangalhado. As intervenções americanas já neste século contra o Iraque, pela maneira como entraram com George W. Bush e como saíram com Obama, foram desastrosas. Infelizmente já a intervenção americana no Vietname tinha sido um pouco desse tipo. Estamos a falar de estados democráticos com opiniões públicas, levadas para estas guerras com a ideia de que são rápidas e fáceis, por causa da grande superioridade tecnológica. A campanha militar no Iraque em 2003 foi uma das mais bem-sucedidas da história, com o exército de Saddam de quase meio milhão de homens a ser derrotado em três ou quatro semanas, com os americanos a ter 160 mortos. Passados dois ou três anos, os Estados Unidos tinham 20 vezes esse número de baixas. 
No seu livro, diz que uma resposta militar ao Estado Islâmico é possível, mas chama a atenção para todo esse cenário pós-conflito.
Os americanos e os ocidentais querem ser politicamente correctos e introduzir rapidamente instituições nesses países. Os americanos são mestres nisso. Introduzir a democracia pluralista... 
Não é possível?
Acho que não. Quer dizer, sobretudo não é possível de um momento para o outro. É muito difícil haver uma democracia pluralista a funcionar sem duas coisas ao mesmo tempo: nação e sociedade civil. O Iraque é uma colagem de uma maioria xiita com uma minoria sunita. Mais os curdos que, sendo sunitas, não têm nada a ver com os outros. 
Mas no mundo árabe os regimes nacionalistas também não vingaram na totalidade.
É verdade. Mas melhor ou pior, as fronteiras mantiveram-se estáveis. O problema é que a Europa e Estados Unidos começaram a introduzir formas ‘para-autoritárias' ou oligárquicas. As intervenções externas são muito frequentes e duram o que duram, porque são muito condicionadas pelas opiniões públicas. Obama, a dada altura, quer sair [de um país] de qualquer maneira. 
Mas Marrocos e Argélia passaram ao lado das "Primaveras"…
Apesar de tudo, Marrocos tem alguma coisa parecida com uma nação. Tem uma dinastia que governa há longa data. O rei é também "Comendador dos Crentes", a autoridade religiosa. Há um prestígio da casa real. E Marrocos fez algumas reformas políticas. 
Não se acentuou lá a separação entre o que é de César e o que é de Deus?
Há algo de tradicional que foi funcionando. Não teve essas intervenções externas, apenas ataques terroristas em Casablanca no início deste século. 
E a Argélia, é a mesma história?
É diferente. A Argélia passou por uma duríssima guerra de independência. Melhor ou pior, os países que se formam através de guerras de independência aceleram a construção de uma consciência nacional. Depois teve uma guerra civil muito dura, entre o jihadismo e o partido FLN e os militares. Manteve sempre uma prevenção autocrática – boa ou má, estamos a julgar da estabilidade – que acabou por funcionar. Embora tivesse alguns problemas, escapou aquele lado anárquico que atingiu a Líbia e em certo momento o Egipto. 
Esses países não precisam sempre uma espécie de "raïs", um chefe, como Nasser e Mubarak, no Egipto, e Khadaffi, na Líbia?
Tenho um amigo que diz que o Egipto é um estado policial desde os tempos dos faraós. Não sabemos bem se dará muito para mudar. A criação de instituições é uma coisa de longa duração. Espanha, por exemplo, teve um longo regime autoritário e pessoal do general Franco. Quando acabou, foi relativamente fácil construir um modelo democrático porque estava criada uma sociedade civil, que não teria sido possível em 1936. Estava criada uma classe média e havia uma certa unidade da Espanha em torno da dinastia. 
Houve essa tentativa no Egipto, com universidades, média, manifestações.
Sim, mas aqui há um problema. É que o conceito de democracia é altamente ambíguo. Para um lado, quer dizer "governo da maioria". Por outro lado, quer dizer respeito de determinados e inalienáveis direitos pessoais, "direitos da minoria". Normalmente os políticos e os média metem tudo no mesmo saco. No Egipto, os Irmãos Muçulmanos (não propriamente uns democratas em certo sentido) ganharam as eleições, um pouco como Hitler subiu ao poder em 1933. Na própria experiência democrática portuguesa da Primeira República votavam 7% dos cidadãos portugueses. O Partido Democrático tinha uma lei eleitoral que lhe dava praticamente sempre a vitória e também procurou destruir os monárquicos e a Igreja. 
Em relação ao "Charlie Hebdo", a sua ideia é que a resposta – o já célebre "Je suis Charlie" - não contribuiu acalmar as coisas.
Não contribuiu para coisa nenhuma. É um daqueles movimentos de massa provocados e manipulados. O Presidente Hollande estava num dos momentos mais baixos da sua não muito famosa história política e levou à séria promover toda aquela movimentação. 
Mas antes disso, e a existência de caricaturas, do próprio "Charlie Hebdo"?
Acho que um jornal ou um publicação que utiliza a liberdade de expressão para agredir sistematicamente uma grande crença religiosa, seja ela cristã... As pessoas que têm convicções religiosas – e eu tenho – 
sentem-se ofendidas quando os seus símbolos o são. 
Em França, respondem que os tribunais dirimem essa questão.
Mas várias vezes, junto dos tribunais, a maioria muçulmana tentou considerar-se vítima de crimes de ódio, por agressões ideológicas. E os tribunais sempre recusaram. 
Então o que se deve fazer? Proibir os cartoons de Maomé?
Não. Mas quando as leis não se cumprem, as sociedades evoluem do modo que entendem. Aliás, o Charb [cartoonista, director do "Charlie Hebdo", assassinado em Janeiro no ataque à publicação] tinha perfeita consciência do risco que estava a correr. Tinha a noção do risco de perigo de vida que corria a partir de certo momento. 
França é agora o epicentro da agitação na parte europeia neste diálogo com o mundo muçulmano?
Se o chamado "Ocidente" aparecer como o "Charlie Hebdo" e o "mundo islâmico" aparecer com o Estado Islâmico, a nossa sorte não vai ser famosa. 
Também por causa de França?
Por causa do que for. Curiosamente, França é quem está na linha da frente militar para conter exactamente estas ofensivas. França é o país proporcionalmente com mais recursos mobilizados para essa contenção, na zona do Mali, etc. 
E vai concentrar o ódio em si?
Também. Vários ódios.

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