Algumas objecções a Raquel

João Miguel Tavares Público 11/06/2013

Queria começar por pedir desculpa à professora doutora Raquel Henriques da Silva, eminente especialista em História de Arte e ex-directora do Instituto Português dos Museus, a omissão das suas habilitações literárias no título deste artigo. Ou cabia a professora, ou cabia a doutora, e não fui capaz de me decidir. Peço que me perdoe o à-vontade, e que não veja uma questão de carácter onde só há um problema de caracteres. Dito isto, gostaria de aproveitar a sua carta à direcção da passada sexta-feira para continuar a debater o empolgante Crivelligate, em detrimento do impacto da meteorologia sobre as contas nacionais.
O meu último texto provocou uma comoção generalizada, por duas ordens de razões. Uma, ideológica: eu estaria a defender Pais do Amaral, o capitalista esfaimado, em vez dos interesses de dez milhões de portugueses que já se perfilavam para abrir a boca de cultural espanto diante do quadro de Crivelli. Citando a referida carta de Raquel: "Como é possível amesquinhar com tanta leviandade a energia do capital simbólico perante a efemeridade ferida de morte do dinheiro?" A outra razão das críticas era de perspectiva: eu defendia o direito a exportar o quadro esquecendo que a família que detinha originalmente o Crivelli não tinha usufruído do mesmo privilégio.
Começando pelo fim: é perfeitamente possível que Pais do Amaral tenha comprado o quadro porque percebeu que havia ali bom negócio, antecipando que seria capaz de o libertar para exportação. Podemos indignar-nos com isso? Podemos, e até fica bem. Mas convém perceber que tal negociata, a ter acontecido, só foi possível pela existência de um desrespeito original pela propriedade privada e por um abuso das funções do Estado, que atinge toda a gente transversalmente, seja Pais do Amaral, seja a família que detinha o quadro.
A lei do património que Raquel defende com tanto entusiasmo, considerando-a uma "civilizada lei", aprovada por unanimidade, é, de facto, demasiado vaga, e contém nela a habitual prepotência centralizadora do Estado português. Não por promover a inventariação e a classificação do património privado, nem por conferir ao Estado direitos de preferência. Tudo isso me parece efectivamente civilizado. Mas não há justificação para a alínea 3 do artigo 64.º, que está ligada de forma directa a este caso, conferindo ao Estado o direito de "vedar liminarmente a exportação ou expedição, a título de medida provisória, sem que de tal providência decorra a vinculação do Estado à aquisição da coisa". E atenção: esta alínea completamente discricionária regula algo tão geral quanto "bens que integrem o património cultural", mesmo que não estejam classificados, ou sequer inventariados.
Para o terrível liberal que eu sou, impedir a exportação sem vínculo de compra é, para todos os efeitos, um direito ao sequestro de propriedade privada por parte do Estado. E, sim, deveria ser inconstitucional. Até porque são estas alíneas vagas que depois permitem aos que melhor se movem nos corredores do poder aceder a privilégios vedados ao comum dos mortais. Eu, tal como a Raquel, adoro capitais simbólicos. Mas quando eles são sustentados à custa da "efemeridade ferida de morte" do dinheiro dos outros, parece-me, no mínimo, desonesto. E, mais do que desonesto, contraproducente, como tentarei demonstrar no meu próximo (e, com sorte, último) texto sobre este tema.
Jornalista jmtavares@outloook.com

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