O vocabulário tetraplégico

João Miguel Tavares
Público, 20/06/2013

No passado fim-de-semana, enquanto fazia pesquisa para a crónica que anteontem foi publicada neste jornal, encontrei um conjunto de textos extraordinários no site da Fenprof. E entre eles, este: "O Governo português aposta numa política de onde se destacam a redução do défice público, a privatização de serviços, uma forte ofensiva contra os direitos dos trabalhadores e a perversão dos próprios serviços públicos com a introdução de modelos de gestão ditos empresariais, bem como de lógicas de mercado que conduziriam, a concretizarem-se, à subversão do modelo constitucional e ao completo esvaziamento das funções sociais do Estado. É nesse sentido que as escolas e os professores ficarão sujeitos aos mais ferozes ataques de um governo cuja natureza assenta nos dogmas neoliberais da desregulação das relações de trabalho."
Pergunta em jeito de desafio: quando foi escrito este texto? 2011? 2012? 2013? Nada disso. Este texto é uma resolução aprovada no conselho nacional da Fenprof em... 3 de Outubro de 2003. Sim, 2003, era então primeiro-ministro José Manuel Durão Barroso. Isto foi escrito há dez anos, mas poderia ter sido escrito ontem à tarde: "redução do défice público", "ofensiva contra os direitos dos trabalhadores", "lógicas de mercado", "subversão do modelo constitucional", "esvaziamento das funções sociais do Estado", e até - cereja em cima do bolo - "dogmas neoliberais". Eu juro que quando li esta última expressão senti necessidade de voltar a verificar a origem do texto, para ter a certeza de que ele tinha mesmo dez anos. Mas é verdade, tem mesmo dez anos - ou seja, em Outubro de 2003, caíra Bagdad há seis meses e a popularidade de George W. Bush batia recordes, já o adjectivo "neoliberal" era utilizado como arma de arremesso em Portugal.
Claro que se pode sempre defender que o Estado anda a espoliar os funcionários públicos há décadas. Mas eu diria que se os males que a Fenprof aponta ao país em 2013 são exactamente os mesmos que já apontava em 2003, quando as notas de euro ainda cheiravam a novo e o crédito à economia era uma torneira aberta, temos pelo menos de lhe atribuir o enorme mérito - aos sindicatos, aos partidos, ao país em geral - de ter conseguido que durante dez anos nada de significativo mudasse em Portugal.
Diz-se que uma das espantosas proezas de Shakespeare foi a vastidão do vocabulário que utilizou nas suas peças: cerca de 20 mil palavras, numa altura que se estima que o inglês não tivesse mais de 150 mil. É um número astronómico, ao qual somou entre dois a seis mil vocábulos (as teorias variam) que ele próprio tratou de inventar. Ora, a política portuguesa é o exacto oposto disto. Pedir um Shakespeare para zurzir a pátria é certamente pedir de mais, mas, no eterno retorno dos mesmos argumentos, o país parece vítima de uma anedota velha e esgarçada, repetida dezenas e dezenas de vezes. Já ninguém reage, mas parecemos condenados a escutá-la incessantemente.
Esta paralisia do discurso é um dos mais profundos sintomas do nosso atraso. Se o mundo é hoje radicalmente diferente, como é possível que as palavras de 2013 sejam iguais às de 2003? Como é possível que tantos embarquem neste queixume de gagos, que se alimenta do eco da sua própria voz? Queixem-se, protestem, indignem-se - mas sem este cheiro a naftalina verbal, por amor de Deus. À falta de soluções, ao menos enriqueçam-nos o vocabulário.

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