A filha do merceeiro metodista de Grantham


São mais de 800 páginas. Mas lêem-se quase de um fôlego e, como observou The Economist, ficamos com vontade de seguir para o segundo volume (que ainda não saiu). Refiro-me ao primeiro volume da biografia autorizada (mas não oficial) de Margaret Thatcher por Charles Moore, antigo director do Daily Telegraph e da Spectator, actual cronista de ambos: Margaret Thatcher, The Authorized Biography. Volume One: Not for Turning (London, Allen Lane/Penguin Books, 2013).
Não é uma peça de hagiografia. Charles Moore foi apoiante de Thacther, mas nunca pertenceu ao seu círculo de fiéis. Margaret Thatcher convidou-o para escrever a sua biografia, na condição de o livro não ser publicado antes da morte da biografada. Disse-lhe que não queria ler a obra e que não reclamava qualquer controlo sobre o que ele viesse a escrever. O livro ficou pronto há sete anos, mas aguardou em total sigilo a morte da biografada. O primeiro volume foi publicado em Londres no passado dia 23 de Abril. É uma obra-prima, e parece quase impossível que seja o primeiro livro de Charles Moore. Recomendo-o vivamente a todos os admiradores de Margaret Thatcher - mas não só. Recomendo-o a todos os que, na direita, na esquerda ou no centro, admiram o mundo de língua inglesa. E também aos que, sem comungarem dessa admiração, guardam ainda assim alguma curiosidade pela civilização livre ocidental.
Na elogiosa recensão publicada por The Economist, diz-se que as primeiras duzentas páginas são maçadoras, quando comparadas com as seiscentas seguintes. É em parte verdade, na medida em que as seiscentas seguintes são incrivelmente "engaging". Mas não me parece que a juventude de Margaret Roberts (Thatcher) fosse tão desinteressante quanto The Economist dá a entender.
Pode ser dito que, sobretudo se lermos o livro com vagar, encontramos nas primeiras duzentas páginas a mesma Margaret Thatcher que a seguir conquistou a atenção do mundo. Com a vantagem de descobrirmos uma jovem ainda sem os constrangimentos do poder - e por isso com a candura das convicções que mais tarde a levaram ao poder.
É nessa candura das convicções juvenis que podemos descobrir a imensa força renovadora que Margaret Thatcher iria mais tarde trazer ao conservadorismo britânico - uma força renovadora só comparável, no século XX, com a de Winston Churchill e, nos EUA, com a de Ronald Reagan. Acredito que muitos liberais sentirão empatia com essas convicções da jovem Margaret Roberts, assim como muitos trabalhistas da velha guarda (isto é, não marxistas nem pós-modernos, mas defensores da dignidade dos trabalhadores e das pessoas comuns). Também os democratas-cristãos sentirão empatia com a jovem Thatcher, que nutriu por eles simpatia nem sempre reciprocada.
Margaret era de facto filha de um merceeiro e tinha enorme admiração pelo pai. A mercearia anunciava-se sempre como "a melhor" - e os testemunhos sobre a época confirmam que era a melhor da pequena povoação de Grantham. Alfred Roberts, pai de Margaret, era também activo membro da secção local do partido conservador, além de pregador metodista - o metodismo ao qual Élie Halévy atribuiu o "milagre da Inglaterra moderna". A educação metodista incutiu-lhe a matriz cristã que nunca a abandonou, inspirando uma veneração por normas de conduta e boas maneiras a que Adam Smith, Edmund Burke e Jane Austin tinham chamado "propriety". Estas normas de conduta não podiam ser impostas aos outros, tinham de ser aceites voluntariamente e difundidas pelo exemplo. Uma vez aceites, distinguiriam os melhores cristãos - um pouco como a mercearia de seu pai devia ser a melhor, mas apenas à sua própria custa. "Tudo depende de mim" - era a máxima da Inglaterra durante a segunda guerra, que a família Roberts admirava e praticava, com exigência metodista.
Parece ter sido a máxima crucial de Margaret Thatcher. Foi com ela que dirigiu a sua vida e que lhe permitiu chegar a Oxford. Foi com ela que mobilizou a associação dos estudantes conservadores da universidade e foi com ela que viria a assumir a liderança do partido conservador.
Ao contrário do que se diz, Margaret Thatcher nunca foi contra o Estado social e sempre permaneceu fiel à ideia churchilliana da "rede de segurança para todos". Mas indignou-se com a estatização dos serviços sociais e com a criação de uma "nova classe" burocrática que esbanja o dinheiro dos contribuintes. Também se indignou com a linguagem tecnocrática do seu partido conservador e a sua identificação com os interesses instalados.
Para ela, a causa conservadora era a das pessoas comuns que aspiravam a melhorar a sua condição e das suas famílias. Essa causa só poderia ser defendida através da liberdade, da oportunidade, da concorrência... e de impostos baixos. Mas este programa político não era um fim em si mesmo - exprimia as aspirações das pessoas comuns. E foi com estas que Thatcher ganhou três eleições nacionais consecutivas, mudou a Inglaterra e ajudou a vencer o comunismo, dando voz às pessoas comuns para lá da cortina de ferro. Durante todo esse percurso, ela nunca deixou de ser a filha do merceeiro metodista de Grantham.

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