O valor académico da experiência política segundo a Universidade Lusófona

Público 2012-07-14 José Pacheco Pereira
Há muita coisa pouco rigorosa no Parecer de equivalências e feita à medida do fato que se pretendia vestir a Relvas


Traduzir a "experiência da vida" em qualificações académicas é uma tarefa difícil, mas com sentido. Defendo que tal seja uma prática institucional no ensino universitário, onde a ideia de "saber" tem que ir muito para além dos graus académicos formais. No entanto, como infelizmente se passa quase sempre com ideias com mérito, existe uma capacidade para as transformar em mais um pretexto para a troca de favores e cumplicidades, que degrada o ensino universitário e estende o campo da corrupção, do clientelismo e do patrocinato à atribuição de "equivalências" académicas como favores políticos. Não é ilegal, parece, mas é inaceitável.
Os documentos apresentados aos jornalistas pela Lusófona foram cuidadosamente organizados pela universidade, colocados fora do contexto, após um hiato de vários dias em que a sua consulta não foi permitida, não se sabe porquê. Quando vieram a público, uma série de fotocópias estendidas numa mesa, separadas por tema, os jornalistas tiveram meia hora para as consultar sem haver possibilidade de as reproduzir, controlados por funcionários da universidade. 
O Parecer que justifica as "equivalências" é talvez o mais significativo documento que se conhece sobre o "caso". Este é um documento sobre o qual gostaria de saber muito mais, em particular sobre a sua tramitação em 2006 dentro da universidade: em que actas se encontra, como foi enviado aos outros membros do Conselho Científico, como foi discutido, está anexado a quê, apenso a que documentos, ao livro de actas, ou está isolado numa pasta? Ora também aqui, como aconteceu no processo Sócrates, quando se tentava esclarecer uma matéria, um documento, uma omissão, apareciam logo novas questões, novos documentos, novas omissões e, acima de tudo, imensas contradições. 
O Parecer de equivalências é por si só um documento muito interessante, não só porque é feito à medida do aluno muito especial, mas também pelo que revela de uma certa maneira de pensar a política. O seu conteúdo é danoso para a Universidade Lusófona e compreende-se a preocupação dos seus alunos e professores de se porem a milhas deste processo. Mas é também um documento sobre o Portugal dos nossos dias.
Começa porque os saberes que o documento refere são todos vivenciais e não será difícil a todos os deputados da Assembleia, todos os dirigentes da JSD e JS, os funcionários dos grupos parlamentares, os presidentes de secções, distritais, federações, organismos regionais, seja lá o que forem, ou seja todo o pessoal com experiência de cargos partidários, de Monção a Vila Real de Santo António, que não tenha um grau académico, obter uma licenciatura na Universidade Lusófona e usar o "dr." antes do nome. É que os argumentos para dar o título a Relvas aplicam-se a todos eles e a muitos deles com mais mérito e razão. 
Por exemplo, se Jerónimo de Sousa quisesse ser "doutor da mula ruça", como coloridamente se referiu ao título de Relvas, teria o curso de imediato. Não tem ele experiência do "exercício de cargos públicos, o exercício de funções políticas e o desempenho de funções em domínios empresariais, ou de intervenção social e cultural"? Militante e funcionário do PCP, dirigente sindical, autarca (tudo "exercício de cargos públicos, o exercício de funções políticas"), organizador tanto de greves como de festas como a do Avante! ("desempenho de funções em domínios empresariais, ou de intervenção social e cultural"), não encaixa nos critérios da Lusófona? Não tem ele "experiência (...) que se estende ao longo de mais de duas décadas de actividades essencialmente focadas no domínio da política nacional e local"? Até mais do que duas décadas, o que devia dar um doutoramento. Não tem ele "desde muito jovem uma participação activa nos mais relevantes palcos do debate e da discussão política nacional, nomeadamente enquanto deputado à Assembleia da República"? Não tem ele por essa experiência "a aquisição de competências relevantes na área de (...) Ciência Política e Relações Internacionais, nomeadamente aquelas que dizem respeito à compreensão dos quadros institucionais da actuação política e partidária em Portugal, (...) ao funcionamento dos sistemas eleitorais, (...) métodos e técnicas de análise política e (...) consequências sociais do fenómeno político"? Se tem! Até se podem acrescentar várias "universidades da vida" muito complicadas: fez a Guerra Colonial, trabalhou numa fábrica, estudou ao mesmo tempo que trabalhava, militou num partido "duro", em que os riscos sociais de exclusão são muito mais pesados do que no PS e no PSD depois de 1975. 
Mas Jerónimo de Sousa nunca pediria equivalências académicas pela sua vida, até porque entenderia que isso a diminuiria no seu valor de esforço, ou naquilo a que chamaria "de luta". E não tenho dúvidas de que Jerónimo de Sousa, que é em grande parte um autodidacta, gostaria de ter tido mais qualificações académicas. Como muita gente que não pode estudar para além do ensino básico e profissional (também ele "frequentou" o antigo Curso Industrial, que interrompeu para ir trabalhar), com a sua condição social, valoriza o estudo, o conhecimento, e a escolaridade.
Foi para responder a esta valorização da escola, para muitos que dela foram afastados pela "vida", que, numa fase inicial, as Novas Oportunidades se dirigiam, com grande mérito e resultados importantes ao nível do 9.º ano. Depois, Sócrates estragou-as ao transformá-las num programa de bandeira, obcecado por estatísticas marteladas e produzindo diplomas administrativos. Mas só quem não viu como gente que nunca mais tinha imaginado voltar à escola o fez, mesmo quando tinham "apenas" que fazer a história da sua própria vida, em cadernos cuidados e ingenuamente decorados, com uma escrita esforçada, pode desvalorizar essa experiência. O diploma do 9.º ano não servia para quase nada, mas voltar à escola deu brevemente a muitos portugueses um sentido de vida e dignidade que pensavam perdido para sempre.
Mas este não é o mundo da Universidade Lusófona nem de Relvas, que desprezam os seus pares por não serem espertos como eles são. Hoje dir-se-ia "empreendedores". Por isso, a Universidade Lusófona atribuiria estas "equivalências" com mais rapidez e sensação de "normalidade" - o que é o maior absurdo neste caso é esta "normalidade" - a um jovem lobo em ascensão numa juventude partidária e num partido do poder, do que ao velho comunista, sábio, mas bem longe de ter as relações certas que a universidade quer cultivar com a elite no poder político em Portugal. Porque o favor que foi feito a Relvas, que é isso que se chama ao que aconteceu, como o favor que no passado foi feito a Sócrates, são trade offs com o poder político, não os únicos, nem certamente os mais importantes, mas reveladores do pântano em que se move o poder em Portugal.
Há muita coisa pouco rigorosa no Parecer e feita à medida do fato que se pretendia vestir a Relvas. Por exemplo esta caracterização da militância nas juventudes partidárias e do "peso relevante que as mesmas adquiriram no contexto da transição para a democracia e a integração de Portugal na Comunidade Europeia está reflectido na informação curricular apresentada". Lamento, mas não percebo. 
O papel de relevo das juventudes partidárias, essencialmente o acesso crescente ao poder nos partidos "adultos", a nível nacional e local, está longe de ter a ver com o "contexto da transição para a democracia", quando muito referido a 1974-6, em que as juventudes eram ainda muito incipientes. O seu poder começa a ser relevante só na década de oitenta, sendo que o currículo partidário de Relvas só começa a ter relevo no final dessa década, ou seja muito depois do "contexto da transição para a democracia". O mesmo se pode dizer da "integração de Portugal na Comunidade Europeia", onde também o papel das juventudes partidárias é negligenciável, ou bastante mais tardio. 
Na verdade, "o peso relevante", como diz o Parecer, é em grande parte resultado da progressiva sobreposição da carreira nas juventudes com a ascensão no PS e no PSD da primeira geração de políticos profissionais cuja carreira era essencialmente interior. E é também nessa fase que o problema da ligação dos "jotas" com a profissão ou a falta dela, ou com as qualificações académicas, ou a ausência dessas qualificações, começou a ser questionado publicamente como perverso. Ora a carreira de Relvas é completamente típica desse momento de profissionalização dos "jotas", que adquiriam um estatuto político e de poder, dentro dos partidos e na governação, a que não correspondiam outras competências que não o controlo das nomeações partidárias. É o que significava o anátema dos "jobs for the boys", ou das carreiras ascendentes baseadas apenas no jogo de poder interno. Foi isso mesmo, uma carreira feita apenas de lugares políticos ou de nomeação política, que a Lusófona premiou em Relvas, à revelia da crítica social crescente a esse modo de fazer política. 
Todo o Parecer é assim, vago e genérico, abstracto e pouco rigoroso, justificando tudo e nada. Podia ser resumido a duas ou três linhas: Relvas é um dos dirigentes em ascensão no PSD, é mação da nossa "obediência", detém um poder considerável em todos os mecanismos-chave da partidocracia, nomeações, facilitações, intermediação, influência, etc., o PSD é um partido do poder portanto é bom para a Lusófona, que é uma universidade privada, "estar bem com o poder político", ter boas relações com este tipo de pessoas. Ponto. Bastava e era muito mais verdadeiro.

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