O acto de recordar

Público 20120725 Pedro Lomba

No intervalo de poucos dias morreram três personagens da nossa vida pública: José Hermano Saraiva, Pedro Ramos de Almeida e Helena Cidade Moura. Três personalidades que não podiam ser mais diferentes, nem podiam ter experiências de vida e políticas mais opostas. Pertenciam a uma ou mais gerações que estão a passar. Das três, foi sem dúvida Hermano Saraiva o mais conhecido da massa que vê televisão ou compra livros. Confesso que o conheço melhor a ele do que aos restantes. Mas não interessam agora comparações forçadas e injustas sobre a craveira de uma ou de outra.

Eram figuras do passado, na exacta medida em que fizeram no passado aquilo por que são lembrados: a celebração e popularização da História, a resistência pessoal e dramática, o reformismo educativo e cultural. E o que me parece interessante apontar é o que estes três desaparecimentos nos dizem sobre o passado. Não sobre o passado em si, mas sobre a maneira como nós falamos do passado, sobre o acto de recordar.

Um ex-ministro do Estado Novo, um ex-militante comunista e uma ex-deputada da extrema-esquerda e reformadora em democracia convocam memórias distintas do passado. Aqueles que relembram Hermano Saraiva podem não ser, como decerto não são, os mesmos que recordam Ramos de Almeida ou Cidade Moura. Podem pertencer, como decerto pertencem, a tribos diferentes e inconciliáveis. Podem lembrar uns desejando apagar outros. O país de Hermano Saraiva estaria nos antípodas do país de Ramos de Almeida ou Cidade Moura. E nem seria o país, mas somente aquela parcela do país, exígua, capaz de reconstruir os itinerários de cada um deles, capaz de reconhecer o mundo em que cada um deles agiu.

Tudo isto traz quase sempre a infeliz consequência de tornar viciada a nossa experiência rememorativa como nação. Nós quase nunca falamos do passado sem nos procurarmos representar nele. A História consiste numa perpétua tentativa de apropriação, quando aquilo que relembramos coincide com o que somos e com o que a custo queremos preservar. O costume, nessas alturas de regresso, é fazer um juízo selectivo. Falamos só dos nossos, não dos outros. Como se nos servíssemos da História para afirmarmos a nossa superioridade moral, para mostrarmos como estávamos certos e como outros, mais cegos e obtusos, nos impediram de triunfar. Usamos a ideologia para o que não devia ser ideológico.

Na realidade, se prestarmos atenção existe sempre outro país. Outro país que, quando tem de recordar a experiência de homens concretos, tenta não pensar na História como um campo de batalha; não pensa nas culpas da crise estudantil de 69, no que eram os partidos comunistas, nos embustes ideológicos e políticos do século; no fundo, não contabiliza pecados.

Alguns obituários que li nestes últimos dias, impiedosos sobretudo contra José Hermano Saraiva, quase fizeram esquecer de que pode ser essa a diferença entre a memória de um país em guerra civil e a memória de um país em democracia: o apaziguamento.

Nesse outro país, a recordação histórica é um acto de união e apaziguamento. Nesse outro país continuamos a recordar coisas diferentes, de maneiras diferentes. E conseguimos viver bem com isso.

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