Em defesa da Câmara dos Lordes

Público 2012-07-16  João Carlos Espada
Será vantajoso trocar liberdades reais, ainda que bizarras, por sistemas imaginários?


O Governo conservador-liberal britânico sofreu na passada terça-feira uma derrota significativa na Câmara dos Comuns, a câmara baixa do Parlamento. Curiosamente, a derrota dizia respeito à reforma da câmara alta, a chamada "Casa dos Lordes". Aos olhos dos analistas continentais, o assunto dificilmente faz sentido no "mundo moderno", sendo apenas mais uma expressão anacrónica das "bizarrias" inglesas. Mas talvez o incidente faça mais sentido do que parece à primeira vista.

O episódio conta-se em poucas palavras. O Governo de coligação conservador-liberal apresentou uma proposta de reforma da Casa dos Lordes e quis impor um limite temporal à discussão da proposta. Sem esse limite temporal, as tradições parlamentares britânicas permitem eternizar o debate e, na prática, podem inviabilizar a reforma. O assunto parecia pacífico. Mas uma revolta de muitos deputados conservadores e alguns trabalhistas ameaçou derrotar a proposta de limite temporal do Governo. Este acabou por retirar a medida, dizendo que voltaria ao assunto no Outono.

Em causa está uma mudança profunda da Casa dos Lordes, um assunto que tem sido discutido pelo menos nos últimos cem anos. Na sua versão actual, a câmara é constituída por 826 membros não eleitos, incluindo pares hereditários e não-hereditários. A proposta do Governo reduz o número total de membros para 450, exigindo que 80% passem ser a eleitos com base no sistema proporcional em listas de partidos.

O método de eleição em listas de partidos e em sistema proporcional foi uma das primeiras razões para a revolta parlamentar. Ao contrário do continente europeu, este sistema é muito mal visto em Inglaterra. É percepcionado como fonte de uma oligarquia de partidos, e não de um Parlamento em que os deputados prestam pessoalmente contas aos seus eleitores.

Mas a razão principal da revolta parlamentar é ainda mais funda e ainda mais difícil de compreender no continente. A democracia britânica não foi desenhada por um grupo de reformadores ou, ainda menos, de revolucionários. Não tem uma data de fundação, nem uma escritura pública fundadora, nem sequer uma Constituição escrita num só documento. Por outras palavras, a democracia britânica não foi feita, ela emergiu ao longo de um demorado processo de evolução.

Isto significa que as instituições britânicas, as mais antigas instituições liberais do mundo, não foram desenhadas, nem sequer reformadas, de acordo com um modelo teórico predefinido. Elas foram sendo adaptadas gradualmente, por ensaio e erro, para responder a problemas concretos, digamos assim, para funcionarem melhor.

Há princípios ou regras gerais que lhes subjazem - a prestação de contas aos contribuintes, o equilíbrio de poderes, a submissão geral às leis e não ao capricho dos governantes ou dos burocratas -, mas não há um modelo predefinido mentalmente para satisfazer ou concretizar esses princípios. O figurino das instituições não é definido de antemão. Ele emerge da adaptação gradual por pequenas, por vezes ínfimas, adaptações.

Desta disposição falibilista e gradualista, surge o ditado if it is not broken, don"t fix it. Por outras palavras, se uma instituição está a funcionar razoavelmente, não vale a pena mexer-lhe, sobretudo se a razão para lhe mexer for apenas um modelo teórico considerado melhor, ou perfeito.

Ora acontece que a Câmara dos Lordes funciona bastante bem. Reúne cabeças independentes dos partidos, com elevada experiência pessoal e profissional nas mais diversas esferas de actividade e de lazer. Tem exercido um efectivo poder moderador em decisões maioritárias dos Comuns, hoje percepcionadas como erróneas, mas, na altura, entusiasticamente aprovadas por paixões passageiras. Se não fosse a Câmara dos Lordes, a Inglaterra teria hoje uma legislação politicamente correcta impondo severas restrições à liberdade de expressão religiosa, ou ainda severas limitações ao direito a julgamento por júri, para citar apenas alguns exemplos. Finalmente, a Casa dos Lordes é a câmara parlamentar mais barata do mundo, uma vez que os seus membros não recebem vencimento.

No chamado "mundo moderno", a Casa dos Lordes pode talvez ser considerada uma "bizarria". Mas, como observou Tocqueville, talvez as bizarrias inglesas tenham alguma coisa a ver com a longevidade das suas liberdades. Isto é seguramente difícil de entender, e até de admitir, por aqueles que Adam Smith designou por "homens de sistema". Mas será de facto vantajoso trocar liberdades realmente existentes, ainda que bizarras, por sistemas imaginários, ainda que modernos e perfeitos?

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