O triplo cânone da injúria

DN2010.10.04 JOÃO CÉSAR DAS NEVES

Há dias a imprensa trazia o título: "Banco do Vaticano sob investigação de 'lavagem de dinheiro'." Quem entende a lógica da perseguição religiosa deve sorrir: começou a segunda fase.Durante milénios as lutas contra a religião nasciam de razões religiosas. A fé é central na vida e, embora inaceitável, é humano lutar pelo que se acha importante. Isso persiste nos combates entre confissões, como na Índia e Sudão, ou em países que exterminam crenças diferentes da oficial, como Arábia Saudita ou Coreia do Norte. Na nossa sociedade livre, tolerante e secular isto é impossível, mas a perseguição religiosa permanece, revestida de formas mais subtis.
Inicialmente as forças anticlericais justificaram os seus assaltos com acusações de violência. O mito da Igreja sangrenta na Inquisição e Cruzadas foi dominante no século XIX. Mas é ridículo atacar pessoas pacíficas e serenas por histórias de séculos antigos. Não só os católicos actuais não pretendem tribunais ou invasões mas até os velhos casos invocados foram bastante mais complexos e ambíguos que a vulgarização maçónica quis fazer crer. Também as calúnias de a religião ser contra a ciência ou o progresso não pegam.
Afastadas essas desculpas, as arremetidas anticatólicas reduzem- -se ao triplo cânone da injúria, que já vem de Lutero: dinheiro, sexo e poder. É sempre disto que se acusam bispos, padres e fiéis. Omite-se Cristo e os santos, despreza-se a doutrina, ignora-se a vasta e diversa presença na comunidade, esquece-se a espantosa acção social. A atenção limita-se a um punhado de casos, dissecados à exaustão, sempre em questões financeiras, eróticas ou políticas.
A situação é irónica porque a Igreja sempre foi a principal promotora da virtude nesses campos. A "perfeição evangélica" - que todos os católicos devem respeitar, de forma conveniente ao seu estado, e os religiosos consagrados cumprem rigosamente - baseia-se nos votos de pobreza, castidade e obediência. Estes são valores cristãos centrais, que as sociedades pagã e secular sempre criticaram como vícios, cobiçando riquezas, praticando a lascívia, cultivando a rebeldia. Na injúria, o Diabo cita a Escritura sem cumprir.
Mas não serão graves e reais as acusações, como no caso dos padres pedófilos ou agora no Banco do Vaticano? Isso é algo para polícia e tribunais determinarem. Mas os factos concretos têm pouco que ver com a campanha mediática que os acompanha, e que não visa a justiça particular. Estas manobras jornalísticas são clássicas e tradicionais, como nos lembra o centenário da República. E repetem-se em ciclos.
As acusações de pedofilia, tema dos anos 1990 em meados do pontificado de João Paulo II, ressurgem agora sem razão aparente, sempre citando factos antigos onde a morte ou prescrição tornam já impossível fazer justiça. Ninguém nega o horror dos crimes reais e a necessidade de acudir às vítimas e punir os culpados. Mas porquê falar agora? Porquê assim? Porque desaparece tudo debaixo da obsessão pelo tema?
A verdadeira questão é o sucesso do pontificado de Bento XVI. Morto João Paulo II, esperava-se que o Papado caísse numa apatia que dispensaria ataques. Nos primeiros anos as notícias apenas tentavam ridicularizar a figura de Ratzinger. Mas ele começou a marcar pontos. Viagens difíceis - Turquia, EUA, Terra Santa -, encíclicas e livros profundos, decisões sábias e serenas traziam nervosismo aos inimigos. Sobretudo o Ano Sacerdotal exigia uma resposta, e ressurgiu a pedofilia.
O Papa visitou há dias a Grã-Bretanha, viagem cheia de significado histórico, manifestações espantosas, intervenções memoráveis. Os jornalistas devem ter-se sentido ridículos, omitindo tudo excepto as estafadas referências ao escândalo arcaico. Isso mostrou como o tema está a ficar esgotado. Era preciso passar à fase seguinte, e apareceu o caso do Banco, reposição de um enredo dos anos 1980. Se este não pegar, iremos ouvir críticas ao reconhecimento da Santa Sé pela ONU ou ao poder excessivo de cardeais. Começará a terceira fase do cânone da injúria.
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