Vistas curtas

Público 20100723  Luís Campos e Cunha  

Assuntos importantes raramente são urgentes e raramente os assuntos urgentes são os mais importantes

Defender aquilo em que acredito é um dever e um privilégio. E, devo confessar, estar contra a corrente dá-me um gosto acrescido. Infelizmente muitas vezes tenho tido esse gosto. Nada mais irrita, quando se quer discutir um assunto importante, do que o argumento que o problema é outro, para não se discutir esse.

E os assuntos importantes raramente são urgentes e raramente os assuntos urgentes são os mais importantes.

Naturalmente que o problema mais grave da nossa sociedade é o desemprego. Qualquer pessoa minimamente bem formada não pode deixar de pensar e agir consequentemente. O desemprego é um drama pessoal inimaginável e um problema social (e económico) que pode ser minimizado nas suas consequências pela acção do Estado. Simplesmente a sua resolução não está, fundamentalmente, nas mãos do Governo. É a prazo que o problema, de facto, se pode resolver pela revitalização do crescimento.

Lamentável é que o desemprego continue a aparecer nas bocas de alguns, à laia de manobra de diversão, quando não se querem discutir outros assuntos, também importantes. Recusam discutir o Freeport, porque o problema que interessa aos portugueses é o desemprego; não se deve falar da embrulhada TVI-PT, pela mesma razão; e agora não se discute a revisão constitucional, porque o problema dos portugueses é o desemprego.

Ora, sendo o desemprego um problema cuja resolução última é a prazo e que tem a ver com o bom funcionamento do sistema económico, e estando este claramente ligado com o bom funcionamento do sistema político, nada mais a propósito do que discutir a eventual revisão constitucional. Há ainda outra forma de matar uma discussão: matar o mensageiro. Por exemplo, Vital Moreira neste jornal, sobre a proposta do PSD, não hesita em afirmar que "... as ideias do PSD" são "retrógradas e oportunistas." Mais ainda, as propostas pelo "... facto de terem sido feitas publicamente dizem muito sobre a forma caprichosa e irresponsável como o PSD aborda as mais sérias questões político-constitucionais." É pena, porque o artigo vale a pena ser lido (concorde-se ou não) mas matar o mensageiro mata também a crítica à mensagem.

Há questões que são importantes e, desde logo, os poderes do Presidente da República (PR) e as suas responsabilidades. Se a ideia do PSD é uma dupla responsabilidade do Governo face ao Parlamento e ao PR, podemos ter problemas. Quem tem poderes, tem responsabilidades. E, qualquer que seja o PR a ser eleito, pode ter uma orientação ideológica diferente do Governo e podemos ter mais instabilidade. Se o PR o demite, fica com a possibilidade de ver a reeleição do mesmo partido. Se não demite o Governo, podendo fazê-lo, fica comprometido com o que não concorda. No primeiro caso, cria uma crise política grave; no segundo, uma co-responsabilização do PR por uma política governamental de que discorda. Portanto, neste aspecto tenho dúvidas - há que ver os detalhes, que não conheço, e o diabo está nos detalhes.

Já me parece uma boa ideia a moção de censura construtiva. Se há no quadro parlamentar uma alternativa, o Presidente deve aceitar essa alternativa maioritariamente aprovada pelo Parlamento, antes de poder dissolver o Parlamento.

Há, no entanto, algo que penso ser uma pequena revolução se viesse a ser aceite. E seria uma boa revolução. Não me apercebi dos termos exactos mas nas diferenças pode ficar como achega da minha lavra: qualquer nomeação do Governo para lugares técnicos deveria ser objecto de uma avaliação parlamentar prévia. Ficariam apenas de fora os lugares de estrita confiança pessoal, como sejam os lugares de gabinete de cada membro do Governo. Mas incluir-se-iam nessa avaliação prévia os directores-gerais, os órgãos dirigentes de institutos públicos, os administradores de empresas (públicas ou não) de nomeação governamental, etc. A análise do Parlamento deveria ser técnica: saber se a pessoa proposta pelo Governo tem um curriculum que se adeqúe ao cargo, independentemente de ser do partido do governo ou não.

Esta avaliação parlamentar, que pode ser mais ou menos vinculativa, teria um efeito dissuasor para nomeações de gente sem passado para lugares de responsabilidade. Esse efeito dissuasor levaria qualquer Governo a pensar duas vezes antes de propor um medíocre. Por outro lado, qualquer medíocre seria dissuadido de aceitar um convite do Governo, porque poderia passar pelo enxovalho de não passar a sua nomeação no Parlamento.

Naturalmente, uma norma deste tipo implica uma maturidade democrática muito grande. Se o Parlamento começasse a vetar por razões estritamente políticas, daí em diante nenhum bom técnico estaria disposto a aceitar uma proposta governamental. Seria pior a emenda que o soneto.

Já fiz muitas outras sugestões que acredito poderiam melhorar o desempenho da política em Portugal. Mas a apreciação parlamentar para lugares técnicos de nomeação política, estou certo de que já poderia representar uma melhoria considerável.

Estar a discutir apenas os problemas urgentes é esquecer os problemas importantes: não é sinal de bom coração, é sintoma de vistas curtas. Em qualquer caso, discutir a revisão constitucional, no sentido de melhorar o funcionamento do sistema político, é também facilitar a resolução dos problemas económicos e sociais de hoje. Especialmente porque todos reconhecem que há problemas no funcionamento do sistema. Lembram-se da embaraço que foi o defunto estatuto dos Açores? Professor universitário

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