O que os olhos não vêem o coração não sente

Público, 20100715 Helena Matos
O que se passa nas praias da linha do Estoril, no bairro parisiense de Belleville, na função pública francesa...

I.A praia. Todos os anos é o mesmo: começa o calor e começam as notícias sobre os assaltos nas praias, sobretudo na linha do Estoril. Como tudo isto tem algo de rotineiro, já não espanta a sequência: acontecem uns episódios de violência que logo são desmentidos. Fala-se de populismo e racismo. Em seguida acontecem outros incidentes. Aí assume-se que algo está a acontecer e anunciam-se reforços. As televisões mostram as praias com os banhistas na toalha e os polícias no paredão num tal aparato que mais parece uma zona de guerra cujos habitantes se obstinassem em dar uns mergulhos. Aqui chegados fica tudo mais ou menos satisfeito, porque os miúdos dos ditos bandos desaparecem das praias e dos comboios, presumindo-se que andam a asnear por outros lados. Sobretudo andam a queimar tempo até que já tenham idade para serem tratados como criminosos, pois aquilo que a sociedade faz perante estes grupos de adolescentes é esperar que cresçam e possam então a ser tratados como gente grande. Esta profunda hipocrisia, servida em doses diárias de xaroposa retórica sobre a protecção dos menores, limita-se a funcionar como uma crónica anunciada da delinquência futura. E não fosse a praia nem perceberíamos como esse discurso é falso e, ele sim, criminoso.

A praia é hoje um dos raros locais onde, em Portugal, se misturam grupos, classes, cores, credos. Durante décadas os filhos dos mais diversos portugueses conviveram na escola pública e no serviço militar. Hoje talvez só o futebol e certamente a praia conseguem reunir num mesmo espaço as pessoas independentemente das suas origens. E quando se reúnem torna-se óbvio o que se não quer ver: os portugueses têm medo. Mas nas praias da linha do Estoril não acontece nada que não aconteça durante o restante ano noutros lugares: simplesmente as vítimas não são as do costume.

II. Os chineses desaparecidos. Fartos precisamente de serem as vítimas do costume dos assaltos dos bandos, dez mil chineses manifestaram-se em Paris, no fim de Junho. Exigiram "Segurança para todos "; "Belleville, bairro tranquilo", "Fim à violência ".

Ou seja, nada do que estes chineses reivindicavam se integrava no decálogo dos tópicos obrigatórios a abordar quando se trata de imigrantes e minorias. Eles não se queixavam de pobreza, nem de racismo, nem daqueles outros comportamentos que é suposto os imigrantes abordarem. Eles queriam simplesmente não ser assaltados, nem agredidos por agressores que se cansam de identificar, e que as autoridades ou a lei não só não penalizam, mas a quem dão um tratamento que os chineses de Belleville consideram privilegiado. E davam exemplos: em Junho, durante um casamento que teve lugar na comunidade chinesa, irrompeu um destes bandos. Pretendiam roubar os envelopes vermelhos, em que os convidados deixam dinheiro para os noivos. Gera-se em seguida uma perseguição dos chineses aos assaltantes que resultou num chinês baleado pelos assaltantes e detido pela polícia. Do lado dos assaltantes houve um ferido que foi hospitalizado e, dizem os chineses, mandado para casa. "Em França, não existe justiça para as vítimas", declararam os chineses de Belleville. Perante o desconcerto de tais declarações, grande parte da comunicação social sempre tão ávida de dar conta das manifestações das minorias por essa Europa fora, e muito particularmente em Paris, reagiu não noticiando o que tinham para contar os chineses de Belleville.

III. "Tudo isso é verdade, mas escusavas de o ter escrito" - este foi um dos comentários registados pela autora do livro Absolument dé-bor-dée!

Publicado em Março deste ano, sob pseudónimo, este livro relata a experiência duma funcionária pública num município francês também não identificado. Trata-se duma dessas administrações locais onde, segundo a autora, todos se dizem "absolument dé-bor-dés!" (o que em português se poderá traduzir por "completamente arrasados") com as suas 35 horas de trabalho semanais que, ainda segundo a autora, serão, numa hipótese benévola, 35 horas mensais ocupadas em coisa alguma que seja útil para os cidadãos. Reuniões inúteis, seminários sem qualquer interesse, burocracia sem limite, chefes caprichosos, colegas manhosos e que abominam quem quer trabalhar, funcionários que levam horas a tomar café e uma total ausência de noção de que é um serviço público são descritos por esse alguém que assinava Zoe Shepard.

O que chocou no livro de Zoe Shepard não foi o que ela escreveu. Aliás, o conteúdo não foi desmentido. Foi sim tê-lo escrito. Ou seja, admite-se que tudo aquilo é verdadeiro mas simplesmente ela não devia dizê-lo, pois põe em causa o dogma da função pública, ainda por cima ao nível local. A função pública tornou-se em boa parte da Europa um Estado dentro do Estado. Reformá-la é tarefa para governos suicidas. E, se alguém quer chegar a primeiro-ministro, o melhor caminho é declará-la intocável. O simples acto de descrever como essa corporação funciona pode custar muito caro, como bem descobriu a jovem mulher que assinou Zoe Shepard.

O pseudónimo da autora de Absolument dé-bor-dée! foi vasculhado e descobriu-se que por trás dele estava uma funcionária de categoria A, Aurélie Boullet de seu nome. Paradoxalmente foi a própria administração pública que, na sua ânsia de encontrar a identidade da autora, acabou a identificar o município descrito no livro: Aurélie Boullet trabalha na região da Aquitânia. O conselho regional da Aquitânia acusou este mês de Julho Aurélie Boullet de não respeitar o dever de reserva e suspendeu-a de funções. Dois anos sem vencimento é a penalização que o conselho regional acha adequada como punição por Aurélie Boullet ter escrito que em muitos serviços públicos não se trabalha na realidade mais do que 35 horas por mês, sendo o tempo restante certamente muito ocupado mas nada produtivo.

Apenas como nota final registe-se que nesta mesma França, há seis anos, se gerou uma enorme vaga de solidariedade para com a funcionária da EDF Corinne Maier, que escreveu um livro cujo título era o seguinte: Bonjour paresse. L"art et la nécessité d"en faire le moins possible en entreprise (Bom dia preguiça. A arte e a necessidade de fazer o menos possível na empresa"). Como é óbvio, a senhora Meier não sofreu quaisquer sanções, pois ela não punha nada em causa.

IV. Os soldados internacionais. No Afeganistão morrem soldados de estranhas nacionalidades: são soldados da NATO, soldados internacionais... Onde fica o país NATO? E qual é o país que se chama internacional? A Internacional é um hino não uma pátria. Quando muito, pode ser uma associação de partidos políticos. Mas não um país. Na verdade, são soldados noruegueses, italianos, franceses. São também espanhóis ou, melhor dizendo, são emigrantes da América Latina, equatorianos e colombianos, como os soldados Christian Javier Qhishpe e John Felipe Romero Meneses, caídos este ano no Afeganistão, que vêem na integração nas forças armadas espanholas uma forma mais fácil de ultrapassar as fronteiras da fortaleza europeia (qualquer semelhança com o Império Romano não é coincidência).

Mas voltemos aos soldados cujos caixões não vemos, sobretudo desde que estas mortes deixaram de ser murros na cara da Administração Bush. E no caminho paremos diante desses desgraçados ugandeses mortos num atentado executado por fundamentalistas islâmicos quando assistiam à final do Mundial de futebol.

O terrorismo existe. Os conflitos também. Queremos acreditar que não é connosco. E quase que conseguimos, pois as medidas de segurança tomadas após o 11 de Setembro levaram para longe esses corpos envoltos em cintos de explosivos. Mas a nossa segurança é conseguida, umas vezes melhor, outras pior, com a intervenção de pessoas como esses soldados com quem assepticamente na hora da morte preferimos não partilhar sequer a nacionalidade. Os governos para não terem de responder a perguntas incómodas. Os cidadãos para fazerem de conta que não têm nada a ver com isso. Ensaísta

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