Erudições

Público, 2010.07.03  José Pacheco Pereira
A erudição é hoje um completo anacronismo e é vista como uma coisa obsoleta, inútil, desligada da realidade

Aerudição é definida pelo Webster como "extensive knowledge acquired chiefly from books: profound, recondite, or bookish learning". Escolhi uma definição de dicionário americano, porque os americanos são muito matter of fact nestas coisas e vão ao cerne da questão sem delongas. Ou seja, escolhi o menos erudito dos dicionários para começar a falar de erudição.

O conhecimento "aprendido dos livros", elemento fundamental de toda a erudição, não está propriamente no top de coisa nenhuma. A erudição é hoje um completo anacronismo e é vista como uma coisa obsoleta, inútil, desligada da realidade, oposta ao verdadeiro saber e um obstáculo a esse mesmo saber. Como em tudo, a erudição tem os seus excessos de pormenor e detalhe tão cheios de pulsão fractal, que Mandelbrot reconheceria como uma forma especial de matemática. Jorge Luis Borges, que era não só um erudito como um amador de erudição, um entusiasta da erudição e o grande ficcionista da erudição, retratou na sua loucura de mansarda ou biblioteca, caverna ou gabinete, com personagens que se consumiam dia a dia à procura de uma qualquer perfeição totalitária impossível de atingir. Pierre Menard, o autor do Quixote, é talvez o mais fabuloso retrato borgeano dessa procura de absoluto que acaba por resultar num Quixote em tudo idêntico ao original, mas "melhor". O sonho de absoluto que anima toda a erudição, saber tudo sobre tudo, é no fundo vão, mas nunca ninguém viu um genuíno erudito desistir, a não ser pela loucura. Loucura mansa de um modo geral, por isso os eruditos vivem no meio de nós como uma espécie em extinção.

Amá fama portuguesa da erudição não é só de agora. Eça de Queirós gozava com o seu Topsius, uma encarnação do sábio alemão, uma figura popular de caricatura da época, quando eram os alemães e as universidades alemãs as grandes fontes dessa forma peculiar de saber que era a erudição na sua forma mais absoluta: a do conhecimento total, a da enciclopédia. Os ingleses fizeram o Oxford English Dictionary, sem dúvida uma grande obra de erudição, mas os alemães não se ficavam pela sua língua, queriam o mundo todo, o Kosmos de Humboldt, e a sucessão imensa de volumes eruditos que as grandes universidades alemães produziram desde o século XIX, listagens de inscrições clássicas, edições críticas, inventários, catalogues raisonnés, bibliografias, dicionários de línguas, biográficos, bibliográficos, etc., enciclopédias, estudos de fontes, seja o que for que seja detalhado até ao limite absoluto da vontade de nada deixar de fora, de serem obras completas, repositórios do saber e nomenclaturas completas de tudo o que existe sobre a terra, seja papiros ou insectos, ícones ou pinturas rupestres, bolores ou igrejas bizantinas. Por isso, a erudição dá grandes classificadores como Lineu, ou gente capaz de organizar uma realidade complexa num quadro simples que faz avançar a ciência de passos de gigante imediatos, como Mendel, ou como a tábua dos elementos de Mendeliev. Mendeliev é típico: interessava-se por economia, meteorologia, hidrodinâmica, e por vários ramos da química, incluindo a parte estritamente tecnológica e industrial, para além de ser um bígamo, especialista em vodka.

Por cá, a coisa já teve muitos e sólidos cultores. Olho ali para o Dicionário Bibliográfico do Inocêncio, uma obra de uma vida. E para Alexandre Herculano, Gama Barros, Leite de Vasconcelos, Carolina Michaelis, até Michel Giacometti e alguns mais. Todos passaram a vida obcecados por um assunto, um saber, um fragmento de realidade que sem eles desapareceria de vez. Inclui deliberadamente Michel Giacometti, porque, sem ele e Lopes Graça, tudo o que era a música popular tradicional portuguesa teria desaparecido. Pura e simplesmente, desaparecido. Tentaríamos, fragmento a fragmento, recuperar qualquer coisa dessa parte da nossa identidade, mas teríamos, quando muito, um filme quase mudo sobre canções que não conseguiríamos ouvir. Mas há mais: todos trabalharam imenso, porque a erudição é das coisas mais trabalhosas que há. Exige persistência, dedicação quase absoluta, e um teor de vida bastante associal.

Meia dúzia de cultores portugueses continua essa velha tradição, acantonada num cada vez maior isolamento, quando não incompreensão, em áreas do saber mais ou menos arcanas e que nunca chegam aos holofotes dos média. Felizmente para elas, mas infelizmente para os que, por desconhecerem o que se passa nesses ambientes "dos livros", ignoram também a riqueza do que lá está. Três casos são exemplares dessa pulsão do erudito pela sua forma peculiar de saber e dos meios onde ele sobrevive, com a força de ser... saber. Um é o de José de Pina Martins, um bibliófilo recentemente falecido, um dos maiores especialistas mundiais em Pico della Mirandola, e no humanismo renascentista, de Erasmo, e Thomas Moore. Pico della Mirandola tinha aliás a fama de ser o último homem do mundo que sabia tudo, um verdadeiro patrono para os eruditos. Pina Martins conhecia a edição renascentista livro a livro e, quando digo livro a livro, era mesmo assim. Olhava para eles e sabia tudo, quem o fizera, onde fora editado, e, mais importante, se era qualquer variante até então desconhecida, qualquer edição ignorada de alguns dos seus maiores ou menores renascentistas.

Outro erudito cuja área de saber comunica com a de Pina Martins é o Professor Martim de Albuquerque, recentemente homenageado na Faculdade de Direito, erudito, especialista na história do Direito, estudioso da história das ideias políticas e da cultura portuguesa. Os seus livros são um prazer para qualquer erudito, com as páginas repletas de notas, muitas vezes com duas linhas de texto, e uma página inteira de notas a essas duas linhas. Eu sei que isto irrita muita gente, que vê aqui uma espécie de perversão do saber, e há toda uma escola de pensamento anglo-saxónica que abomina exactamente este tipo de práticas, apresentando um texto limpo e uma anexo bibliográfico sucinto. Uma tradição oxoniense vai nesse sentido, mas uma parte do interesse dos estudos como o recentemente publicado sobre Campanella é exactamente a interpretação transportar atrás de si todo o discurso passado sobre um autor, que não só legitima as conclusões como transporta outras presenças. Eu gosto de notas.

Aliás, outro autor que irritava muitos era Vasco de Magalhães Vilhena, que colocava notas em grego (o que ainda pareceria justificável para um dos maiores especialistas em Sócrates) , a que acrescentava notas em russo, a que não era alheio o facto de ser comunista, mas confrontando os seus adversários, como António Sérgio, com um mundo que eles não dominavam. Era também maldade, mas no erudito a soberba é uma permanente ameaça.

Por último, para elogio e divulgação da erudição contemporânea em Portugal, há o projecto da Classica Digitalia, da Universidade de Coimbra (http://bdigital.sib.uc.pt:8080/classicadigitalia/). Poucas áreas existem que mais perderam com a progressiva desaparição da componente humanística do saber nos curricula académicos do que os estudos clássicos. O conhecimento do grego e do latim, que eram até há algum tempo condição sine qua non para se "entrar" em Filosofia (no meu tempo, era o Alemão para o Direito e o Grego para a Filosofia, isto no liceu, sim no liceu...), são hoje meras opções facultativas que atraem apenas uma minoria de uma minoria. O corte com as línguas clássicas empobreceu significativamente todo o conhecimento clássico, mesmo quando aumentou o número de traduções de qualidade de textos antigos.

Por tudo isto, a Classica Digitalia é um trabalho de muito mérito e, como sempre acontece com os clássicos, não há texto que morra de caducidade, mas estão lá vivos e absolutamente actuais. Leiam-se os últimos publicados na Classica Digitalia, as Obras Morais de Plutarco, seja o Como Distinguir um Adulador de um Amigo, o Como Retirar Benefício dos Inimigos, o Acerca do Número Excessivo de Amigos, e o Sobre o Afecto aos Filhos, entre muitos outros textos, e tudo está lá perfeito. Leiam-nos no Portugal de 2010, como esta descrição de Plutarco sobre "o homem que confessa um amor desmesurado por si mesmo" (...). De facto, ele contradiz sempre o princípio "conhece-te a ti mesmo", desenvolvendo em cada um o engano, e mesmo a ignorância, não só sobre si próprio, mas também sobre as coisas boas e as coisas más que lhe dizem respeito, tornando as primeiras imperfeitas e inacabadas, e as segundas completamente impossíveis de corrigir."

Depois venham dizer-me que isto está ultrapassado. Historiador

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