O enigma chinês

João César das Neves

DN, 20090928

Na próxima quinta-feira passa o 60.º aniversário do nascimento da República Popular da China. Este facto não só abriu as portas a acontecimentos incomparáveis em toda a vida da humanidade como foi um dos mais importantes acontecimentos do século XX, criando a que será potência dominante no século XXI. Basta olhar os seis momentos em que a revolução de 1949 celebrou a entrada em novas décadas para ver a terrível e espantosa evolução que sofreu a mais antiga e rica civilização do mundo.

Em 1959, quando a República Popular fez dez anos, começou a maior fome artificial da história, onde morreram dezenas de milhões de pessoas. Esta catástrofe foi o resultado da incrível experiência económica do Grande Salto em Frente, uma tresloucada iniciativa pessoal de Mao Tsé--Tung. Dez anos depois, em 1969, o mesmo Mao declarava o fim da Revolução Cultural, um projecto ainda mais brutal e devastador que, apesar da declaração, estava longe de ter acabado. A turbulência duraria até depois da morte de Mao, a 9 de Setembro de 1976. As consequências, essas, ainda não acabaram.

Em 1979, o clima mudara radicalmente. Logo a 1 de Janeiro, a China estabeleceu relações diplomáticas com os EUA, que o novo homem forte Deng Xiaoping visitou de 29 de Janeiro a 4 de Fevereiro, na primeira viagem à América de um líder chinês. A 8 de Fevereiro, seria a vez de o Estado comunista reatar relações com o mais antigo aliado ocidental, Portugal.

Em 1989, o 40.º aniversário foi posto em risco pelos protestos da Praça Tiananmen, de 15 de Abril ao massacre de 4 Junho. A brilhante década de reformas económicas sem abertura política parecia estar em risco perante os gritos dos estudantes. Mas dez anos depois, em 1999, o Partido Comunista ainda mantinha o poder e recebia a devolução de Macau a 19 de Dezembro.

Esse ano de 1999 foi também o último em que a média do crescimento mundial (3,5%) foi próxima da do valor dos países ricos (3,2%) e em desenvolvimento (3,8%). Logo em 2000, esta última taxa quase duplicou e começou o período em que as economias pobres puxam pela economia planetária. Costuma chamar-se "globalização".

Por causa dela, neste 60.º aniversário, todo o planeta tem os olhos postos no crescimento chinês, esperando dele o reboque para a recuperação do colapso financeiro. Terão terminado os terríveis 200 anos do interregno da China? O Império do Meio passou o século XIX enfraquecido pela decadência da dinastia manchu e humilhado pelo Ocidente nas guerras do ópio. Depois as devastações dos "senhores da guerra" e do invasor japonês lançaram os chineses nos braços dos comunistas, que seriam ainda mais terríveis.

O sofrimento do povo chinês não tem paralelo na história recente, e isso é dizer muito no sangrento século XX. Foram 60 anos mirabolantes, misturando sonhos magníficos, matanças indescritíveis e recuperações estrondosas. Mas a China é já um dos actores principais da globalização e prepara-se para ser a maior economia mundial. A velha sabedoria chinesa, que brilhou durante milénios, regressa ao seu lugar natural. Ou não?

É precisamente aqui que se situa a grande interrogação que assombra este aniversário e um dos problemas mais graves do mundo. Qual o carácter ético e espiritual da China de hoje? Que valores a orientam? Que elevação a motiva? Depois de desmantelar os grande pilares da sua milenar cultura em nome de uma doutrina alemã, que pensa a China? Depois de sofrer a mais selvagem e totalitária doutrinação marxista, como reage a China? Suportando o crescimento produtivo mais estonteante de sempre e sem respeitar democracia nem direitos humanos, que finalidades inspiram o gigante? Vivendo, sob a hegemonia de um partido comunista, a mais desenfreada exploração capitalista que o mundo já viu, que sabemos da atitude chinesa?

A República Popular sofre as terríveis tensões da transformação estrutural, da concorrência impiedosa, das exigências geostratégicas. Mas os verdadeiros desafios são culturais, axiológicos, espirituais. Mortos Marx, Mao e Deng, quem inspira a China?

Comentários

Unknown disse…
Sem dúvida que concordo com as questões levantadas. Penso até, que tudo se poderá resumir nisto: o que é afinal a China/"quem é a China"/no que se tornará o "gigante adormecido"? Penso que será esse o desafio do mundo ocidental: compreender este Povo.
João Wemans disse…
E os chineses? Esse milhar e tantos milhões de pessoas, o que são e o que sentem?
Recordo um dito de um deles, Confúcio, de há séculos:
"Quando vires um homem de mérito, tenta ultrapassá-lo;
quando vires um homem sem mérito, examina-te."
Gonçalo Cadete disse…
Cabe também a Portugal, na sua relação económica e política com a China, contribuir para um mundo mais justo. Deve ser parte da solução e não do problema, ajudando os chineses a libertarem-se da talvez "mais desenfreada exploração capitalista".

Mas para poder ajudar a China, o Estado Português terá primeiro ter de ser exemplo de respeito pela dignidade da vida e pessoa humanas, de solidariedade, de orientação para o bem comum, de ajuda subsidiária aos agentes da sociedade civil.

De outra forma, poderá um cego ajudar outro cego a caminhar?

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