O balcão e o call-center

José Manuel Fernandes

Público, 20090909

Devia ter uns 20 anos e havia dias que atravessava meia cidade para, numa esconsa repartição de uma universidade lisboeta, tratar de uns papéis necessários para corrigir um erro cometido por essa mesma repartição. Vivia-se no tempo do papel selado de 25 linhas e o serviço tinha um horário bizarro: fechava às 11h30. Fatal horário, como se verá.

Naquele dia não havia nenhuma minuta afixada que me ajudasse a formular o meu pedido, mas o funcionário tanquilizou-me: eu que escrevesse assim e assado que tudo estaria bem. Assim fiz, coisa rápida, pois o tema era banal, mas quando lhe estendi a folha, logo descobriu uma falha que invalidava o requerimento. Respirei fundo, olhei para o relógio, e perguntei:

- São 11h15, vocês fecham daqui a um quarto de hora, não dá tempo para comprar nova folha de papel selado e entregá-la a horas. Abrem-me a porta depois, não abrem?

"Não", respondeu-me sem sequer olhar para mim. Procurei manter a calma e expliquei que trabalhava do outro lado da cidade, que já tinha ido e vindo várias vezes, que por certo não iam já almoçar às 11h30 e que o erro se devia a ter-me dado a informação errada. "Não", repetiu.

- Pode então chamar-me o seu superior, para eu lhe colocar o meu problema?

"Não", ouvi de novo. E eu não insisti: como em todos os balcões antigos, aquele tinha uma parte do tampo que se levantava para permitir que, depois de aberta uma portinhola, se passasse para o lado de lá. Foi o que fiz, perante o olhar aterrorizado dos funcionários. Passei à porta em frente e, na sala enorme que estava por trás, só morava uma senhora sentada a uma secretária. Foi a ela que me dirigi:

- Sabe dizer-me onde está o chefe desta repartição?

Via tornar-se mais pequena na sua cadeira e ouvia sussurrar: "Sou eu." Ainda bem. Sem me sentar, descarreguei a minha história e voltei a pedir (a exigir) que aceitassem o meu requerimento uns minutos para lá das 11h30. Com uma voz ainda mais mirrada, a senhora chefe de repartição anuiu. E eu lá entreguei o requerimento, feito que não me livrou de muitas outras peripécias burocráticas cujo relato ocuparia o espaço de várias crónicas.

Dir-se-á: mas isso foi no tempo do papel selado. Responderei: é verdade, mas mesmo assim foi antes dos call-center. Porque nestes, invariavelmente, termino a pedir a quem me atende e coloca, à frente de cada resposta, um inamovível "senhor José", que me passe ao responsável do turno. Uma das últimas vezes foi porque, algures do outro lado do éter, alguém me garantia que um serviço que ainda não tinha sido ligado estava "terminado". Nenhum argumento demoveu a teimosia na resposta formatada de quem me atendia, nem sequer o facto de não encontrar no computador que indicava que o serviço estava "terminado" qualquer indicação sobre o momento em que teria "começado". Fiquei mesmo a suspeitar que a formatação das respostas não lhe permitia distinguir o significado das palavras, pelo que lhe era indiferente saber que nada pode terminar antes de começar.

O "chefe", de novo, lá atendeu a minha queixa. Mas não a resolveu.

Sina minha, presumo

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