Pode a política não ter valores?

Maria José Nogueira Pinto

DN, 20090903

O fim da Guerra Fria, com a quebra das ideologias gerais e do confronto de modelos "civilizacionais" que lhe servia de justificação, contribuiu para acelerar um fenómeno de "fim das ideologias" que já tinha sido apregoado por muitos, desde os anos 60, à medida que os problemas económicos e sociais das sociedades desenvolvidas pareciam esbater, sob um modelo progressivamente unificado de receitas e soluções, a polémica sobre os fins últimos da política, conseguindo até ressuscitar Saint-Simon com a ideia de "substituir o governo das pessoas pela administração das coisas".

Foi esta decadência das ideologias que arrastou uma decadência dos valores e a questão que, apesar de tudo, permanece é a de saber se sem convicções e sem valores pode haver, verdadeiramente, luta política ou, mesmo, política. Como podemos resignar-nos a uma política assepticamente não ideológica, não valorativa, sem princípios objectivos, sem convicções?

Uma agenda política tem de definir valores, convicções e políticas consequentes: tem de escolher em nome desses valores e da sua coerência, uns caminhos, e tem de rejeitar outros. Porque uma das razões da indiferença dos cidadãos comuns pela política é que esta, como espectáculo (às vezes triste) do protagonismo de personalidades e de casos, lhes surge como alheia ao que realmente é importante.

Quando Manuela Ferreira Leite decide entrar em ruptura com uma forma de fazer política, geradora de descrédito e desconfiança, e fazê-lo a partir de um PSD que mercê de sucessivas lutas internas não lograra constituir-se como alternativa, joga uma parada altíssima e de enorme risco. Não vale a pena, pois, comparar o seu programa com o do PS em número de páginas ou em quantidade de medidas. O mérito deste programa é ser feito para o País que temos e com vista ao País que queremos e não, apenas, para conquistar votos. Este é, aliás, um dos raros programas que ousou ter um fio condutor, um pano de fundo valorativo. E é neles que se escora a sua coerência intrínseca.

Cito apenas alguns exemplos: o reconhecimento da necessidade de valores cívicos e éticos; a importância de um Estado social apto a aproveitar toda a energia da sociedade civil; a família tomada como eixo de todas as políticas sociais; uma visão da política como a arte do possível obrigando a opções prévias e claras; a convocação dos cidadãos como parte deste pacto numa partilha de responsabilidades; a economia como um instrumento ao serviço das pessoas e do desenvolvimento; o reconhecimento da importância de mobilizar e estimular as valências do poder local; a substituição de um dirigismo asfixiante por um Estado no seu lugar, garante da ordem pública e das condições de bem-estar que dê espaço de respiração às aspirações e projectos dos indivíduos, das famílias e das instituições; o reconhecimento de que solucionar o terrível problema da Justiça arranca, hoje, sobretudo do reforço da credibilidade e da legitimidade do poder judicial e dos seus actores; o valor, na saúde, da universalidade do acesso aos cuidados e da promoção da liberdade de escolha; uma cultura de exigência e de rigor na educação. Tudo isto são valores mais seguros e eloquentes que 300 medidas inexequíveis e impossíveis de avaliar.

Resta saber se o "eleitorado" é uma abstracção com que os especialistas em sondagens se entretêm, uma massa incapaz de pensar, movida por slogans primários, promessas vãs, convocada para o espectáculo mas excluída de ser parte. Ou se são pessoas que sabem que a fantasia é inimiga do futuro e não querem mais sonhos efémeros que as façam perder tempo; pessoas comuns que gerem as suas casas e as suas vidas, conhecem as carências e os problemas, capazes de perceberem, apesar do ruído de fundo, o essencial das questões. Eu aposto nestes.

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