Saúde, símbolos e ideologias

Maria José Nogueira Pinto

DN 20090910

É nosso hábito, sempre que há eleições, querer reinventar o País, começar do zero, fazer tábua rasa de experiências acumuladas, estudos, relatórios, livros brancos que jazem nos arquivos dos ministérios. Isto é possível porque não existe informação disponível, tratada, sistematizada, porque as políticas não são avaliadas, porque não sabemos os resultados de quase nada. Assim, de legislatura em legislatura, damo-nos ao luxo de discutir as questões despidas de qualquer memória, num jeito de diatribe sem obrigação de fundamentar ou exemplificar o que se afirma tão peremptoriamente.

Para Francisco Louçã, o SNS é um símbolo e não um instrumento ao serviço da saúde e do bem-estar dos portugueses. Assim, visto como uma bandeira, uma arma de arremesso político, não estranha que seja indiferente ao BE o modo como o SNS funciona, as respostas que efectivamente dá, a qualidade dos serviços que presta, a sua produtividade ou a sua eficiência. Desde que tudo seja feito pelo Estado e pago pelo erário público a consciência social de Louçã fica apaziguada mesmo sabendo (porque decerto sabe) que as desigualdades no acesso aos bens e serviços de saúde têm aumentado em prejuízo, como sempre acontece, dos mais pobres.

É hoje consensual a necessidade de institucionalizar um sistema de saúde que, mantendo o SNS como pilar essencial, se abra à capacidade instalada, quer do terceiro sector quer do sector privado. De facto, a nossa oferta total em saúde é mais do que suficiente e, na óptica de uma rede de prestação de cuidados mista, fornece uma cobertura geográfica satisfatória. Ao Estado competiria a importantíssima função de garantir o acesso, nomeadamente através do financiamento, criar regras claras e transparência na convivência intersectorial, fiscalizar a qualidade dos cuidados prestados e proceder à contratualização dos serviços de acordo com os objectivos estratégicos nacionais em matéria de saúde.

As vantagens são muitas mas basta assinalar estas: a diminuição dos custos, a liberdade de escolha do utente, a melhoria da qualidade dos cuidados de saúde e a garantia de um acesso efectivamente universal.

Sendo que há mais de duas décadas que estas questões se discutem nos governos, no Parlamento, em foros especializados e na opinião pública, é caso para perguntar o que é que tem travado o avanço de medidas necessárias e já adoptadas em tantos outros países com resultados comprovados? A demagogia pura e dura, assente na manipulação dos medos e anseios legítimos dos cidadãos, sem qualquer racionalidade, nem mesmo a ideológica. E assim se têm impedido as mudanças que, por ironia, são decisivas para o reforço do próprio SNS…

A realidade é bem diferente do discurso bloquista. O SNS é cada vez menos universal, geral e tendencialmente gratuito. Os chamados pagamentos "fora do bolso" são consistentemente contabilizados em cerca de 46,6% do total da despesa em saúde e os subsistemas fornecem uma cobertura compreensiva para cerca de « da população. Talvez Louçã pense que os que pagam directamente do seu bolso são os tais ricos de que tanto fala. Mas não, trata-se em grande parte de cidadãos que, para ficarem com os dedos, deixam ir os poucos anéis que têm. A saúde representa já 26% do OE e consome 10,2% do PIB, mais 1% do que a média europeia, o que prova que injector mais financiamento, só por si, não resolverá nada.

No ponto em que estamos, agitar o símbolo do SNS e discutir demagogicamente o seu futuro só pode ser sinal de ignorância ou de má-fé. Pelo contrário, falar em utilizar a capacidade instalada eliminando grandes margens de desperdício, contratualizar, aumentar a produtividade, promover a competitividade entre as diferentes unidades e dar ao utente liberdade de escolha garantindo-lhe um acesso em tempo útil, isso sim, pode ser uma boa notícia.

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