Amizades virtuais

João César das Neves

DN20090803

Imagine um amigo que se põe aos gritos numa estação de comboios ou telefona para números aleatórios apregoando opiniões pessoais sobre questões de actualidade. Tomaria isso como uma atitude sensata? Suponha que conhece um grupo de pessoas que gosta de andar pelas ruas a interpelar desconhecidos tentando interessá-los em discussões sobre assuntos variados. Acharia isso razoável? Que responderia se lhe recomendassem um café onde se conversa sem conhecer o interlocutor? Poderá ser um diálogo equilibrado e sério?

Todos estes comportamentos, que consideraríamos aberrantes na nossa cidade, parecem habituais na Internet. Os blogs, mensagens em massa, redes sociais, mundos virtuais e outros sites de interacção tornaram-se subitamente muito populares. Aí multidões gastam o tempo livre (e boa fatia do que devia estar ocupado) a participar naquilo que dizem ser relação social. Mas, como nos exemplos referidos, estes contactos não constituem verdadeira conversação humana. Se podem evoluir para algo com significado, em geral não passam de dissipação e ociosidade.

Um colóquio tem certas exigências particulares. Não é possível entabular contactos relevantes e válidos com desconhecidos ou passantes eventuais. Isso é verdade na rua como na Net, por muito que isso frustre as certezas dos fanáticos da novidade. Podem fazer-se novas amizades no mundo virtual, mas à custa das antigas e verdadeiras amizades. Poderei ter afecto por uma pessoa que não conheço? E como conhecer alguém de quem apenas recebo algumas frases em escrita truncada? Muitos, que são em geral reservados com estranhos, estão dispostos a meter em casa pela Net desconhecidos durante horas.

Pior ainda, nessas condições as pessoas sentem-se livres das regras da convivência e comportam-se de maneira bizarra. Num blog ou mensagem electrónica escrevem-se coisas que se nunca diriam ao telefone ou assinariam numa carta. Atrás de um anonimato aparente, por vezes confirmado por pseudónimo ou avatar, as pessoas pacatas mudam e surgem arrogantes, insolentes ou obscenas.

O fascínio das novas tecnologias sempre levou a comportamentos estranhos. Já esquecemos as tolices que se fizeram com os primeiros telégrafos, rádios e automóveis. No deslumbramento inicial perante a novidade, excessos e aberrações surgem compreensíveis e comportamentos desequilibrados parecem progressivos e inovadores. Mas são asneira acabam sempre como as velhas asneiras.

A Internet apesar de recente já tem a sua conta de exageros. Lembra-se da euforia da "nova economia" onde viviam as "empresas-gazela"? Esses negócios diziam saltar por cima das regras antigas sem precisar de lucros, armazéns ou clientes, porque as leis de mercado estavam ultrapassadas na realidade do mundo virtual. Tudo isso se esfumou no crash do Nasdaq em 2001.

Desde a descoberta do fogo, o ser humano sabe que os saltos tecnológicos trazem enormes vantagens e grandes perigos. A única forma de beneficiar deles é respeitar as regras básicas da natureza humana. As empresas dotcom aprenderam isso da maneira mais dura. O mesmo se passará com as redes sociais. Elas podem ser excelentes instrumentos para facilitar as verdadeiras relações pessoais. Mas também podem criar novos tipos de sociopatas ou misantropos, absorvidos por conexões fictícias ou doentias e até capturados por párias e criminosos. Além disso, a simples massificação altera o significado do instrumento. Os primeiros blogs tiveram grande influência, como o primeiro jornal era lido por todos. Quando todos têm blogs, ninguém lê nenhum.

Não se pode negar a espantosa capacidade de comunicação que a realidade electrónica nos trouxe. Não é possível medir os ganhos do correio electrónico, sites de empresas e organizações, mercados virtuais, enciclopédias online, jornais na Net, etc., etc. O acesso à informação foi espantosamente melhorado e aumentado, reduzindo-se drasticamente custos da nossa vida. Mas a finalidade tem de ser a vida, não a Web. A Net foi feita para a gente, não a gente para a Net.

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