Ganância

Público, 07.02.2009, José Pacheco Pereira

A "crise" não se deve apenas à ganância, mas o que ela revelou de irresponsabilidade e crime merece reflexão e punição

Não sou muito sensível aos argumentos que se usam contra os ricos e poderosos, à inveja socializada que perpassa em muitos comentários que assentam numa ideia simples e forte, mas errada: há pobres porque há ricos. Há pobres por muitas razões, a começar pelas razões políticas, porque guerras, ditaduras, corrupção, nepotismo, experiências de "engenharia social" condenaram e condenam muitos milhões a uma pobreza endémica. E onde há ricos, gerados pela economia e pela sociedade, há sempre muito menos pobres. Onde os ricos são um problema para os pobres é quando a riqueza tem origem na corrupção, no desvio de dinheiros públicos, e na violência política que protege quem rouba ou quem é corrompido ou corrompe.
Muitas vezes resisti aos ataques aos altos salários dos gestores, que à cabeça está longe de me parecer uma imoralidade quando daí resulta boa gestão, logo mais emprego e mais riqueza socialmente distribuída. Apareça-me alguém que não ande a guiar-se pelas estrelas como o nosso ministro das Finanças e seja capaz de defender empregos, competitividade e condições de vida dignas e não há milhões que sejam bastantes para o pagar pela sua competência. Ainda está por saber o preço que pagamos em incompetência, por mantermos salários definidos pela demagogia e, não sendo o Estado e a política competitivos para atrair os melhores, atraírem antes muita gente medíocre para quem um salário como o de deputado é o melhor que pode ter na vida, sem outro esforço que não seja garantir dentro dos partidos o seu lugar.
Dito isto, também nestes anos, nunca embarquei na ideologia do "sucesso" e no yuppismo que atravessou a nossa sociedade nos últimos anos, feita da contínua exibição do génio de alguns iluminados que nas finanças e em algumas empresas ostentavam o seu "sucesso" e, pior ainda, nunca acompanhei os que os incensavam como um novo paradigma para os jovens.
Isto dá uma mistura incómoda, porque se o yuppismo me é detestável e a inveja socializada me parece perigosa, não posso deixar de me chocar com a ganância absurda cujos contornos começam a aparecer por todo o lado, destapada pela "crise". Não penso que a "crise" se deva apenas ou essencialmente a essa ganância, bem pelo contrário, mas o que ela tem revelado de brutal irresponsabilidade e crime merece reflexão e punição. Quando se sabe que o "buraco" no BPN atinge os 1800 milhões de euros pelo menos, e que no BPP, no BCP, e sabe-se lá em quantos mais bancos e instituições financeiras, se usava toda uma panóplia de truques para fugir com o dinheiro aos impostos e os levar para off-shores, não se pode ficar indiferente, nem encolher os ombros como se isso fosse inevitável, porque é o "capitalismo". Não é inevitável, nem muito menos é o capitalismo.
Os homens da ganância andam por aí, agora mais recatados e silenciosos, passando pelos intervalos da chuva, após anos em que apareciam nas primeiras páginas de revistas que viviam de os colocar nas primeiras páginas, de fatos finos ingleses, roupa mais do que de marca, relógios, brilhando de gel e com cada poro da pele tratados pelo melhor mar, pela melhor neve, por tudo o que o dinheiro permite e dá. Passaram estes anos a falar ou a ser falados sobre o seu sucesso. Eles eram empresários exemplares, banqueiros de risco, movendo-se num palco internacional de muitos e muitos milhões. Eles falavam de alto aos governos e aos políticos, mas nunca perderam uma oportunidade de uma benesse.
As marcas de uma cultura de "sucesso" deste tipo ficaram nas colecções da imprensa económica, entraram nas faculdades de Economia e entusiasmaram milhares de estudantes a seguirem-nos como modelos. Valorizava-se neles uma pseudocultura aristocrática, que sabia comportar-se como devia ser, comer à mesa, beber do mais fino, a que se oporia uma prática de arrivismo e de "novo-riquismo". Toda uma mentalidade de consumo de luxo passou a ter passagem corrente nos jornais, spas, vinhos, resorts, relógios, charutos, a parafernália dos gadgets de luxo. Só o facto desses produtos aparecerem nos suplementos da imprensa de massas e em revistas para os adolescentes que tinham acabado de sair do Hi5 deveria ter feito desconfiar que, afinal, esta aristocracia seria bem mais snob do que nobre.
E tinha boa imprensa. Muitos anos atrás um semanário, O Independente, inaugurou aquilo que achava ser uma apologia do "velho dinheiro" e de uma abominância pelo "novo". Abria-se assim uma distinção cultural destinada a começar a limpar a casa para o brilho asséptico do design dos novos exemplos, para nos dizer que agora era a sério e não uma remake dos construtores civis "patos-bravos". A distinção era absurda, porque muito do que chamavam "velho dinheiro" era também muito mais "novo" do que se pensava, e a distinção com o "novo" se fazia mais por uma espécie de snobismo cultural do que por uma análise de personagens e de "dinheiro". Hoje verifica-se que a ganância era muito mais bem distribuída: o BCP, o "velho dinheiro" ainda por cima católico apostólico romano, assemelha-se nas suas práticas ao BPN, o "novo dinheiro", vindo de baixo, rude e democrático, vindo das Beiras, de Trás-os-Montes, do Algarve. Tinham outra coisa em comum: cegaram, não se sabe bem como, o Banco de Portugal que devia ter visto a tempo muito coisa e foi sempre o último a saber.
Esta ganância vai deixar um lastro muito pesado atrás de si. Ela ajudou a agravar uma crise que na realidade está a ser explicada apenas pela superfície, pelo seu lado financeiro, deixando de parte a crise estrutural das economias e sociedades empresariais e laborais ocidentais face à globalização, que já existia antes da crise e vai continuar a existir quando se deixar de falar dela. Ajudou a destruir milhões para nada e essa parte foi em pura perda. Muitos outros milhões devem ter ficado em património próprio subtraído fraudulentamente. Espero mesmo que sejam muitos milhões, para que as autoridades judiciais procedam ao seu confisco. País em que tal não se possa fazer, fazer justiça contra a ganância criminosa, por truques da lei, não é um país justo.
Mas há outro lastro da ganância, a proliferação e o reforço das ideias mais erradas e perigosas sobre a economia de mercado, sobre o capitalismo, sobre o papel do Estado. Se desta ganância resultar um mundo e uma sociedade menos livre para indivíduos e empresas, o preço da crise será ainda maior, porque atrasará o confronto com as raízes do declínio ocidental, económico e político, insisto que também político, cujas consequências vão muito mais longe do que o desemprego. É preciso por isso defender desta ganância criminosa, as democracias e a liberdade, porque convém não esquecer que o preço que se paga pelo totalitarismo é muito mais caro.

Historiador

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