Ainda a separação radical, Constança Cunha e Sá, Público, 080410

Ainda a separação radical
Público, 10.04.2008
Constança Cunha e Sá
A exigência de alguns temas não se compadece com meia dúzia de frases bombásticas
O artigo que escrevi, na semana passada, sobre o papel da religião (e da Igreja Católica, em particular) nas sociedades contemporâneas provocou várias reacções, entre as quais uma "resposta" de Fernanda Câncio, publicada no Diário de Notícias, no dia 4 de Abril. Como penso que o assunto é relevante e merece ser debatido com abertura, sem se cair num diálogo de surdos que não leva a lado nenhum, vou tentar responder a algumas das críticas que o meu texto suscitou. Antes de mais, e centrando-me no artigo de Fernanda Câncio (Constança ou a "separação radical") gostaria de desfazer alguns equívocos. Ao contrário do que me é imputado, não defini (muito menos para efeitos de "propaganda") dois campos opostos onde os "bons" são vítimas dos "maus" e estes se apresentam como "carrascos". Como todas as simplificações, esta peca por uma excessiva superficialidade, para além de contaminar o debate com apreciações morais que procuram encontrar na "culpa" uma forma enviesada de fugir à realidade. Por maioria de razão, é-me totalmente estranho o "apelo à guerra santa por via do espantalho da "separação radical"". Mesmo correndo o risco de desiludir alguns espíritos mais assanhados, não me parece possível quebrar o marasmo em que vivemos com a heroicidade de uma guerra da qual ninguém tira qualquer vantagem. Por outro lado, e por muito que isso surpreenda a Fernanda Câncio, não nutro uma "repugnância indisfarçável" pelo "fundamentalismo" islâmico. Nutro sim uma "repugnância indisfarçável" por qualquer tipo de fundamentalismo - seja ele religioso ou não. Por isso mesmo penso que a tolerância ocidental pelos fundamentalismos alheios denuncia a "má-fé" de uma civilização que se desencontrou de si mesma e o vazio que se instalou nalgumas sociedades contemporâneas. É impossível não reconhecer, como o Rui Ramos escreveu, ontem, neste jornal, que "o Estado e as ideologias laicistas também já conheceram melhores dias". Mas não deixa de ser curioso verificar que as mesmas pessoas que se recusam a aceitar a importância do pensamento judaico-cristão na formação da Europa revelem simultaneamente uma inesperada compreensão pelos regimes teocráticos que se instalaram nalguns países de religião muçulmana. De qualquer forma, convém registar a forma como a Igreja Católica se tem referido ao islão. Não por acaso, no texto, publicado na semana passada, citei um livro escrito pelo então cardeal Ratzinger (A Igreja e a Nova Europa, na tradução portuguesa), onde se rejeita uma análise "simplista" sobre esta matéria e se conclui que "o islão, seguro de si, exerce sobre o Terceiro Mundo um fascínio muito mais forte do que o cristianismo, a que falta paz interior". Para sossego de Fernanda Câncio, posso acrescentar que, no mesmo livro, se diz também o seguinte: "Da fórmula "fundamentalismo" fez-se uma chave para uma leitura demasiado fácil, que permite dividir o mundo em duas partes: uma parte boa e, contra ela, uma parte má. O fio que une a série dos pretensos fundamentalismos começa no mundo protestante, atravessa o católico, passa ao islâmico e ao marxista." Como se vê, a exigência de alguns temas não se compadece com meia dúzia de frases bombásticas. Aliás, a hipotética "ofensiva" de uma Igreja, também ela mais "segura de si", deve ser compreendida à luz do reaparecimento da religião como factor constitutivo de uma civilização - o que se deve, em grande medida, à crescente presença do "fundamentalismo" islâmico no quotidiano ocidental. A sharia (e as suas implicações) abriu novos caminhos à religião, na Europa, colocando-a, de novo, no centro de um debate que muitos julgavam definitivamente enterrado. A distinção que, por vezes, se pretende instalar entre uma Igreja, rica e conservadora, e um islão, pobre e revolucionário, em guerra contra a "opressão" do mundo ocidental, não é mais do que um delírio do multiculturalismo, na sua ânsia de compreender o "outro" e de se curvar perante a "diferença". Por último, Fernanda Câncio acusa-me de "confundir" qualquer crítica às posições da Igreja com "tentativas de silenciamento e exclusão". Não é manifestamente o caso. Como é óbvio, não penso que a Igreja deva estar acima do debate público - embora tenha referido uma certa "incompatibilidade" entre o relativismo democrático e a natureza absoluta de uma Verdade que emana de Deus. Mas isso levava-nos a um outro debate sobre a natureza da religião, a transcendência do sagrado e a difícil arte da tolerância. Voltando ao que está em causa, não me parece que as posições da Igreja sejam, de facto, criticadas. De uma forma geral, passa-se ao lado do seu conteúdo, para se comentar apenas a sua falta de legitimidade. Pegando num exemplo recente, não se discute o que disseram alguns membros da hierarquia católica sobre a nova lei do divórcio, proposta pelo PS. Em vez disso, questiona-se o facto de estes se poderem pronunciar sobre um assunto que supostamente não lhes diz respeito, ou seja, as posições da Igreja quase nunca são vistas como posições - mas sim como ingerências inaceitáveis nos assuntos do Estado e nas competências de César. Jornalista P.S. - Já agora e a propósito da Fernanda Câncio: como é que o PSD consegue descer tão baixo?

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