O Abraço


GONÇALO PINTO GONÇALVES    WWW.ACEGE.PT


9 de Julho de 2016
Pus o capacete, montei na minha moto, e, porque o meu armário estava desfalcado, saí de casa para comprar alguma roupa, camisas, meias, etc. Era Sábado de manhã.
Nesse dia foi ordenado Padre Jesuita um sobrinho de uma das minhas irmãs. Cerimónia à qual gostaria de ter ido mas que perdi.
No dia seguinte realizou-se a final do campeonato europeu de futebol.
Depois passaram-se as semanas normais de férias. Família, praia, amigos, descanso.
Passaram-se, mas eu nem dei por elas. Só “acordei” em início de Novembro, após longas semanas em coma e recuperação lenta, dos efeitos de um TCE (sigla que aprendi posteriormente o que significava, quando os meus filhos tiveram a “amabilidade” de mo explicaram). Traumatismo Craneo Encefálico. Sofri de outros traumas, mas este terá sido o pior. E outro, claro, foi ter perdido a mencionada final do campeonato europeu de futebol.
Desde então a minha recuperação tem sido lenta. Aliás, e decorrente desta recuperação, escrever isto que aqui tento partilhar não me é fácil de conseguir. Já aqui voltarei a este tema.
Sei, e porque comigo o partilharam, que ao longo destes meses de “sono”, passei por alguns hospitais, por centros de cuidados de saúde primários, e de reabilitação, e por outras instituições onde fui cuidado por vários médicos, terapeutas e assistentes.
Fui acordando e percebendo o que se passava a meu lado. Lentamente. Muito lentamente.
Esta lentidão possibilitou-me compreender novamente o mundo que me rodeava. Devagar, muito devagar, mas cheio de sinais que me enchiam o coração. Primeiro que tudo os meus filhos e a Madalena, minha mulher. Sempre presentes, sempre disponiveis, sempre cuidadores, sempre família. E depois, algo que fui comprendendo devagar, e que se me apresentava como uma novidade, mas que me chegava de vários e muitos lados. Dos irmãos(ãs), dos cunhados(as), dos sobrinhos(as), dos amigos(as), dos doentes que comigo partilhavam o quarto, que também eles se tornaram amigos, e tanta mais gente que comigo se cruzou, ajudou e “tocou”. Este “tocou” significa algo que então compreendi e que se tornou para mim, hoje, muito importante.
Deixo aqui apenas um exemplo do que compreendi. Tornou-se, para mim, importante sentir, ao longo deste percurso, o toque de alguém quando comigo falava. Como, por exemplo, o terapeuta que ao perguntar “Sr. Gonçalo, como tem passado?” me colocava a sua mão no meu braço e mo fazia sentir, mostrando-me que queria mesmo saber de mim. E tantos outros toques nesse sentido que recebi dos terapeutas, dos enfermeiros, da família toda, dos amigos, de muito lado. Compreendi, ou melhor, aprendi isto neste percurso. A importância e o significado profundo do toque. Aprendi-o de tal modo que hoje, quando falo a um irmão, a um cunhado, a um amigo, à minha mãe, a tanta outra gente perto ou longe de mim, não o faço sem que tudo se inicie com um abraço. Forte. Amigo. Interessado na pessoa que abraço. Dando-lhe atenção, carinho, espaço para se sentir pessoa. Essa pessoa não é apenas uma pessoa que “para ali está”. É alguém a quem também um abraço recebido tonifica. Preenche.
Gente que preocupou se nós, enfim, mais a Madalena e meus filhos do que eu, estaríamos em condições de me receber em casa de novo. Acompanhado de uma cadeira de rodas. O meu novo jipe, que espero abandonar em breve. Que se preocupou com as questões financeiras associadas a uma família grande. Continuar a pagar despesas da casa. Das escolas e das universidades dos filhos. E demais cuidados financeiros à volta de quem tem uma família alargada. Algo a que estamos sobejamente habituados, já que tanto a Madalena como eu somos, ambos, os sétimos filhos. E eu ainda tenho mais uma irmã, a oitava. Se a isto juntar cunhados, sobrinhos, e seus filhos, isto dá para perceber o número que anda à volta desta larga família.
Deixo aqui só um exemplo de tantos e tantos cuidados que recebi, recebemos, logo no inicio desta minha provação:
“Madalena, agora precisas de acompanhar o Gonçalo sempre, a cada hora que passa. Continuamente. Não apenas por ele, mas também por ti e pelos teus filhos.”
“Mas eu trabalho! Como vou poder estar sempre disponível?” Perguntou a Madalena.
“Madalena, vai ao hospital sempre que possível e necessário acompanhar o Gonçalo, fica em casa a cuidar dos vossos filhos, trata de ti. Cuida-te!”, alguém lhe respondeu. E continuou, “ … e não tepreocupes com o vencimento que tens como professora, que este será garantido por alguém”.
“Mas quem?”, perguntou a Madalena.
“Alguém!”, foi a resposta.
E assim foi. A Madalena acompanhou-me durante longos meses e “alguém” a ajudou. Nos ajudou.Alguém… Quem? Não sei. E julgo que nem virei um dia a saber. Não interessa. Não é importante. O importante é que fomos, na verdade ainda somos, ajudados por muitos que assim nos quiseram mostrar o seu cuidado, a sua amizade, o seu carinho e, como concluirei mais à frente, mostrar o seu sinal de algo muito mais vivificante. Enfim, não quero contar já o final da experiência. Lá chegarei em breve.
Mudemos de sala.
“Sr. Gonçalo, como tem passado?”, pergunta-me tanta gente com quem me cruzo na minha medicina de reabilitação que se passa em Alcoitão, que já sabe como se inicia a minha resposta, pois já a uso quase como uma frase feita.
“O Sr. está no Céu.” Começo sempre por aqui a minha resposta. Já ouvi terapeutas a falar com doentes, referindo “O Sr. Gonçalo diz sempre que o Sr. está no Céu”. Mas também oiço por vezes respostasimediatas como “… e em todo o lado!” Na verdade o que eu queria, ao principio, era pedir-lhes que não me tratassem por senhor, mas depois… depois…
Aonde quero eu chegar?
Na minha fragilidade, percebi o verdadeiro sentido da palavra amor. Não às coisas, mas o amor ao outro. O amor pelo outro.
Eu, que fui educado a considerar sempre o outro não como coisa, mas como outro eu, que me formei humanamente e espiritualmente através da família, das Equipas de N. Senhora, dos Exercícios Espirituais S.J., nos retiros, de silêncio ou não, dos Cursos para o Matrimónio e, nos últimos anos, do modo como me faço acompanhar por Cristo na minha profissão, nunca percebi verdadeiramente o significado daquilo que Jesus me veio pedir. Nos veio pedir a todos. Interrogado sobre qual o grande mandamento da lei, respondeu Jesus: Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento”. Este é o grande e primeiro mandamento. O segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mateus 22:37-40)
Este segundo mandamento, experimentado com toda a minha fragilidade, fez-me compreender o verdadeiro significado de ser Cristão. Sim, é claro, amarei o Senhor meu Deus, isso é óbvio para qualquer um que professe alguma religião, mas amar o próximo como a mim mesmo, seja quem for, com toda a sua fragilidade, isso é que para mim é novo. Agora o sei. Aprendi-o com sinais vindo de todos os lados que me, nos, rodearam.
E o que foi mais desconcertante foi ver tanta gente a amar o seu próximo como a si mesmo, tanta gente que, sei eu, não se diz, ou não ve vê, como Cristão. Talvez porque a isso não tenha sido ensinado, talvez porque tem vergonha de se afirmar como Cristão, talvez por sentir que a Igreja é local habitual de gente pouco esclarecida, pouco culta, snob, ou de sociedade, talvez por entender que a Igreja, apesar de se afirmar como sinal de Deus, muitas vezes parece praticar ações menos correctas. Talvez por… sei lá. Gente que não se vê como Cristão, mas que, no seu dia a dia, e apesar de tudo isso, ama o seu próximo como a si mesmo!
Que humanidade. Que sinal!
Talvez eu esteja enganado, mas agora compreendo que o segundo mandamento será, é-o para mim, ainda mais importante do que o primeiro.
A minha fragilidade trouxe-me até aqui, a esta minha afirmação que me tem preenchido nos dias que agora percorro. Afirmação que pode ser incompreendida por muitos que se dizem cristãos “de gema”. O que me vai na alma? Isto: “Se amar o meu próximo como a mim mesmo, sempre, estarei simultaneamente, também sempre, a amar a Deus!”. Explico-me: Deus não nos criou para ser amado, mas para lhe mostrarmos que somos capazes de amar como Ele. Não a Ele, mas ao nosso contacto imediato, contacto esse que passa pela família, pelos amigos, pelos colegas, pelos colaboradores, pelos vizinhos, pelos médicos, enfremeiros, restante pessoal hospitalar e terapeutas (!), pelos cidadãos, pelos doentes, pelos presos, pelos idosos, pelos pobres, pelos que estão em guerra, pelos que vivem em sociedades desfavorecidas, pelos…
Talvez isto não seja novo para ninguém, talvez não pareça sequer fazer sentido, talvez esteja enganado e a pisar o risco com o preceitos da Santa Madre Igreja, talvez… mas a minha fragilidade trouxe-me aqui. Amar o meu próximo, seja quem for, seja em que condições for e, assim, sentir-me na companhia de Jesus, a caminho de Deus e, se possível, transmitir-lhes esse amor que não é apenas para mim, mas para todos nós. Na minha fragilidade aprendi que esse amor, se não for transportado pelo toque, pelo abraço, pela palavra amiga, não é verdadeiro amor. E não, não o aprendi através de Marcelo Rebelo de Sousa quando ele o mostrou, e tem mostrado a todos, e bem, quando eu me encontrava fora de“radar”.
Por isso o meu abraço passou a definir-me como pessoa.
Abraço, ou toco, com quem me cruzo, (sempre que é culturalmente aceitável) porque, ao fazê-lo, presto atenção a quem recebe o meu contacto, respeito-o, tento transmitir-lhe força e exemplo de como seguir o caminho que Deus nos propôs a todos e porque, também assim, agradeço tudo o que recebi de tantos (respeito, amizade, paciência, compreensão, força, ajuda, silêncio, …), tudo o que recebemos como família (idem), e, claro, porque me sinto a abraçar Jesus e tudo o que Ele significa. Nunca agradeci a Deus tanto. Que longa incompreensão a minha, mas que sinto hoje ultrapassada. Terei conseguido algum resultado positivo? Que caminho o meu…
Ao Domingo, não acabo uma missa, vivida no convento dos Dominicanos em Benfica, sem ficar uns momentos a olhar para as paredes, para as imagens que as preenchem, para o altar, para o Santíssimo, para as pessoas que ali estiveram, para …, sem agradecer a Deus os dias antecedentes, a companhia que tive de tantos que estiveram na mesma missa, os padres que a celebraram, a música que a acompanhou, a minha família, os amigos e todos aqueles que me possibilitaram rezar e chegar a Deus, tocando-lhes, dando-lhes um abraço. Dou um abraço e estou a agradecer a presença do(a) amigo(a) a quem abraço e de Jesus, que também ali está.
E, como diria um amigo, padre Jesuita, com quem faço muito mergulho (fazia, pois neste momento nem uma barbatana consigo calçar), abraço ou toque é algo que nem sempre é bem visto ou aceite socialmente por culturas, digamos, mais a Norte da nossa mas, entre nós, latinos que somos, é algo que se suporta. Que alguns suportam.
Enfim, tanto português para chegar aqui: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Foi assim, na minha fragilidade, que eu fui amado. Por tantos.
Por isso, e para mim, hoje, na minha fragilidade, faço-o também através de um abraço. Isso aproxima- me dos outros e, também, de Deus.

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