Salvar a democracia

JOÃO CÉSAR DAS NEVES    27.05.17   DN

Portugal tem uma democracia a funcionar. Esta simples afirmação carrega enorme significado, pois todas as experiências democráticas anteriores foram fiascos estrondosos. Em 1974, olhando para trás, era razoável dizer que o nosso país nunca conseguiria viver em sistema aberto e livre. Hoje resgatámos as credenciais democráticas.
Tal não permite descansar: 250 anos de turbulência institucional recomendam a maior cautela. Acaba de ser publicado um livrinho com lúcido e incisivo diagnóstico e terapêutica dos vícios que o regime acumulou em 40 anos. O Sistema Político Português, do professor Manuel Braga da Cruz, na coleção Ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos, consegue, em menos de cem páginas, descrever a história, teoria, problemas e soluções para quatro pilares da nossa vida política: os sistemas eleitoral, partidário, parlamentar e de governo. Esta leitura fácil é indispensável para quem se interesse por Portugal.
"São hoje notórios os sinais de degradação do nosso sistema democrático representativo. Desde logo, o crescente afastamento dos cidadãos da vida política, com a concomitante perda de confiança nas instituições políticas (...) A este afastamento dos cidadãos da vida política corresponde um idêntico afastamento dos partidos dos cidadãos e da sociedade, com o correspondente enfeudamento crescente ao Estado, e a sensação de um Parlamento com deficiências na sua capacidade de representação da sociedade. A somar a tais preocupantes sintomas, confrontamo-nos com problemas de governabilidade, resultantes quer da dificuldade de os executivos se imporem, evidenciando quanto o Estado se encontra refém de interesses instalados, quer da recorrente instabilidade governativa" (pág. 14).
Também a lei dos partidos deve ser revista para "os obrigar a um maior funcionamento interno democrático, a uma maior abertura à sociedade e aos cidadãos, e com incentivos à progressão na carreira parlamentar" (págs. 54-55), mudando também os mecanismos de financiamento. É proposta ainda uma Câmara Alta no Parlamento (pág. 69), como existiu sempre no nosso país, dando também mais autonomia aos deputados face aos partidos. Finalmente sugere-se um ajustamento dos poderes relativos do governo e do Presidente da República (págs. 87-89).
Os problemas estão estudados, os diagnósticos feitos, as soluções estabelecidas. Só falta vontade para as aplicar. Como falhou tantas vezes na condução da sociedade, será o Estado capaz de se reformar a si mesmo? Os sinais não são bons. Todos os partidos no poder querem mudanças, mas são bloqueados pela oposição, que tentará fazer o mesmo quando chegar ao poder.
"Ainda estamos a tempo de reformar, evitando a deterioração do sistema político que nos pode aproximar de indesejáveis rupturas constitucionais, que alguns pedem já abertamente" (pág. 91). Além do terrível sofrimento e destruição que essa ruptura geraria, seria uma pena levar a um fim inglório este único sucesso democrático da nossa história.
Pior, "O Estado anda a fazer menos bem em Portugal o que deve, porque anda demasiado ocupado a fazer o que porventura não deve" (pág. 88). A doença é mesmo grave: além da inflação legislativa, que se pode dizer atingiu o paroxismo, "legisla-se contra a maioria da opinião pública, com a clara intenção de se inovar nos comportamentos sociais pela acção legislativa, encarando a legislação como moldadora de atitudes e comportamentos" (pág. 68). Chega a espantar a arrogância daqueles que dizem servir o povo, mas se consideram seus mestres e donos.
Todos estes problemas são mais visíveis em momentos de crise, quando sobem os protestos, mas é nas épocas serenas de recuperação que têm efeitos devastadores. Quando a oligarquia dominante vive sob protectorado externo, como aconteceu no período da troika, ela é acusada pelos sofrimentos da população, mas toma decisões sensatas. A influência dos seus vícios faz-se sentir sobretudo nas alturas de alívio, porque aí, existindo alternativas e escolhas, o interesse nacional pode ser desviado a favor de certos grupos.
É bom sempre lembrar que os tais "interesses instalados" que tomam o governo como refém não são bandidos, corruptos ou maldosos. São grupos sociais honestos, razoáveis e trabalhadores, que conseguem mais influência do que merecem. Precisamente por serem honrados e decentes, não têm escrúpulos em exigir aquilo que pensam lhes ser devido, e que o país não pode pagar. Assim caímos na paralisia actual, que permanece debaixo das recentes boas notícias.
O diagnóstico é consensual, mas o livro, apesar de conciso e lacónico, avança com soluções simples e claras. "Talvez a mais necessária e urgente de todas as reformas políticas em Portugal" (pág. 36) seja a do sistema eleitoral, em que se propõe uma evolução moderada para "um sistema de duplo voto, escrutinável o primeiro, em círculos uninominais, pelo método maioritário, e o segundo, em círculo nacional, pelo método proporcional de Hondt" (idem).

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