«Exulta Lusitania Felix»

Guilherme d’Oliveira Martins
Voz da Verdade, 2016.06.19

Assinalam-se os setenta anos da proclamação de Santo António de Lisboa como Doutor da Igreja Universal, através da Carta Apostólica do Papa Pio XII - «Exulta Lusitania Felix». É a personalidade que levou mais longe a cultura portuguesa. Infelizmente, a cultura erudita ignorou a figura do Santo durante muitos séculos, esquecendo a riqueza do seu pensamento e o papel fundamental que desempenhou no franciscanismo. O ano de 1946 com a proclamação do Doutor da Igreja foi um marco fundamental para lançar luz sobre a sua figura. Contudo, não foram portugueses os pioneiros nessa descoberta. Foram Cantini, Scaramuzzi e Heerinkx que começaram a dar atenção à obra deste português que se tornou elemento crucial na organização da Ordem dos Frades Menores, por indicação expressa de S. Francisco de Assis. De facto, estamos perante o prenúncio do papel que irá ser desempenhado na Ordem dos Frades Menores por S. Boaventura – o grande teólogo. Só em 1970 surgiu em português a primeira tradução integral da sua obra, graças à iniciativa e à persistência do Padre Henrique Pinto Rema, O.F.M.. Apesar de uma tão pouco compreensível desatenção, não há dúvidas de que Frei António é uma referência indiscutível na afirmação da cultura portuguesa desde muito cedo depois da Reconquista cristã e da criação do reino independente. Com razão, Jaime Cortesão refere o papel fundamental do franciscanismo na História da gesta portuguesa.
Fernando Martins, também conhecido como Fernando de Bulhões, nasceu em Lisboa, onde iniciou a sua formação com os Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, no Convento de S. Vicente de Fora, onde esteve dois anos incompletos, partindo depois para Santa Cruz de Coimbra, para estudar durante cerca de oito a nove anos. Fazia-se sentir a decisiva influência do primeiro Prior, S. Teotónio, braço direito do nosso primeiro rei. O prestígio académico de Coimbra precedeu, assim, o funcionamento do Estudo Geral, podendo dizer-se que a qualidade reconhecida ao futuro santo português demonstra-o. Nesta fase da formação, notamos um especial apego à Regra de Santo Agostinho, a partir de três princípios: obediência, humildade e caridade. Todavia, esta sólida e completa formação teológica não vai impedir que espiritualmente Fernando se vá aproximando da força inovadora das novas ordens mendicantes, através de uma mística centrada na pobreza, o que o levará de Santa Cruz até ao eremitério dos Olivais, ainda em Coimbra, sob a nítida influência do «Poverello» e da trágica memória dos mártires de Marrocos, apesar de adotar o exemplo de Santo Antão. E assim encontramos a vasta cultura agostiniana transmutada para o ideal franciscano, o que leva o agora frei António até Itália. Quando S. Francisco de Assis conhece o português e verifica a solidez dos seus conhecimentos, incumbe-o do ensino da Teologia aos frades menores – numa carta que a moderna historiografia considera autêntica. Estamos perante uma ligação teológica da maior importância, centrada no agostinianismo, que articula intelectualismo e misticismo no entendimento da Teologia como ciência prática – acentuando o papel da vontade e a necessária articulação de uma sensibilidade aberta ao mundo e à singularidade pessoal. Nesta perspetiva, o pregador afirma-se com indiscutível carisma, que S. Francisco considera ser fundamental para a afirmação e consolidação dos Frades Menores, usando o método da pregação em que os dominicanos se haviam celebrizado e diferenciado. Quando nos confrontamos com o magistério de Frei António, verificamos serem os «Sermões Dominicais e Festivos» aqueles que constituem o núcleo autêntico de uma notável produção.
A chave da originalidade franciscana está na procura da dignidade pessoal, no sentido da fraternidade, na troca de dons, na vivência espiritual da pobreza, na compreensão do outro, na procura de tudo o que a irmã Natureza tem para nos dar e nós para lhe atribuir… Mas os Sermões, longe da abstração, contêm um voz severa e crítica contra os falsos profetas, os hipócritas, os padres avarentos, os prepotentes, os ladrões, os luxuriosos, os bispos indignos, os monges que fazem do deserto um palácio, do claustro um castelo, da solidão uma corte real – e ainda os leigos presos de todos os vícios. Sem eufemismos, Frei António põe cada um perante as suas responsabilidades, exigindo aos cristãos que saibam dar o exemplo…

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