O ano do dilúvio

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Público, 2014.06.02
É difícil recordar a vertigem de 1914, embora ela ainda seja palpável. Os inícios do século XX foram uma idade de ouro, muito superior aos tempos venturosos de Péricles, Augusto, Carlos Magno ou São Luís. O mundo vivia unido pelo telégrafo, caminho-de-ferro e navio a vapor, integrado pelo padrão-ouro e livre-cambismo, regulado pelo Império Britânico.
As eras vitoriana e Belle Époque manifestavam uma sofisticação, elegância e florescimento que, apesar de algo fúteis e superficiais, estabeleciam um patamar antes inatingido de realização humana. Engenharia, medicina e indústria prometiam ganhos ainda maiores, como a arte, a ciência e a exploração. Os regimes nascidos de sucessivas revoluções, durante 150 anos, estavam no auge do seu esplendor. Tinham rejeitado as referências espirituais, sociais e tradicionais anteriores, mas sentiam-se a alcançar a prosperidade.
Manifestação dessa plenitude foi a glória imperial. A guerra era símbolo de vitalidade e pujança. Nunca se pode esquecer que em 1914 os soldados partiram entre aclamações de multidões excitadas. Foi em alegria e exaltação que começou a "Grande Guerra", que ficaria com o nome muito mais sinistro de "Primeira Guerra Mundial". Em 1914 ninguém sabia que começavam os 30 anos mais horríveis da história.
Parecia apenas mais um conflito entre vizinhos, igual a tantos. Não era já uma quezília feudal, porque as democracias e ditaduras tinham cunho popular. Mas todos o viam como as lutas de Luís XIV, Napoleão ou Bismarck. Só que a indústria aumentara exponencialmente a destruição bélica, ainda sem impacto táctico. Só no fim do conflito apareceram o avião e o tanque, que mudariam para sempre a batalha. Por enquanto a violência era estática, mas já colossal, com toneladas diárias de bombas, balas e metralha. A consequência foi uma chacina patética e inútil, com os exércitos empatados quatro anos sem resultados. Os vencidos não perderam no terreno; simplesmente desistiram.
Isto sangrou uma geração nas trincheiras. Pior, a raiva levou os derrotados, que pediram honrosamente o armistício, a serem cruelmente castigados com "reparações de guerra". Isto teve duas consequências. A primeira foi danificar o equilíbrio económico que funcionara tão bem antes da guerra. Os anos 1920 foram de alívio, pelo fim da luta, mas com latente instabilidade, manifestada em hiperinflações e sobrevalorizações cambiais. Tudo acabaria na euforia financeira de 1928 até ao crash de Outubro de 1929. Mal tratado politicamente, ele deflagraria a "grande depressão", o pior pesadelo económico da história moderna.
A segunda consequência foi pior. Ao desequilíbrio económico e à falta de crescimento juntou-se o esmagador sentimento de injustiça pela crueldade, o que embalou as forças extremistas que prometiam um mundo ideal. Desligada há décadas de referências espirituais, sociais e tradicionais, a humanidade ocidental estava pronta para embarcar em sonhos utópicos, que a incinerariam nas ditaduras da raça e do proletariado. A guerra seguinte foi de movimento mas sem quartel, arrasando cidades, multiplicando campos de concentração. O mundo foi levado ao limite do inferno.
O auge do horror foi a Segunda Guerra Mundial, o holocausto e gulag. Mas ele ainda reverberaria na "revolução cultural" dos anos 1960, nos khmers vermelhos dos anos 1970, na China e na Coreia do Norte do século XXI.
O contraste entre a serena prosperidade de 1914 e o vórtice horroroso das décadas seguintes não podia ser maior. A humanidade já tinha vivido uma experiência como essa: "Nos dias que precederam o dilúvio, comia-se, bebia-se, os homens casavam e as mulheres eram dadas em casamento, até ao dia em que Noé entrou na Arca; e não deram por nada até chegar o dilúvio, que a todos arrastou" (Mt 24, 38-39). Esse ano permanecerá um aviso para a todos. Passado um século, as ameaças são muitas, mas a humanidade perdeu a ingenuidade e tem medo.
É irónico que o filme Noé de Darren Aronofsky seja um dos êxitos deste ano de 2014, cem anos após o ano do dilúvio.

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