Fome de escândalo

Público 2011-07-12 Pedro Lomba

O escritor brasileiro Nelson Rodrigues conta algures nas suas memórias (na verdade disse-o muitas vezes em crónica) que aprendeu a escrever lendo folhetins oitocentistas e histórias de crimes da imprensa brasileira da primeira metade do último século. Foram aquelas histórias de violência e assassinato que selaram o seu destino como jornalista e dramaturgo.

Durante muito tempo, o Jornal de Notícias tinha uma secção precisamente intitulada "Polícia", a par da "Política" ou do "Internacional" (ignoro se se mantém). Primeiro estranhava-se, depois entranhava-se. Porque é que um jornal não deveria ocupar-se da miséria humana, actualizando-se com os novos presidiários e os delíquios da véspera? Se o público queria, o público recebia.

Há uma história de Mark Twain de que me lembro sempre quando penso nos malefícios de um certo jornalismo da devassa. Twain é candidato a governador do Estado de Nova Iorque. Goza de vantagens sobre os rivais. Tem bom carácter. É independente. Mas começa a campanha e os jornais atiram-se ao candidato. A primeira acusação: perjúrio. A segunda: roubo. A Terceira: difamação.

Não satisfeitos com isso, os periódicos prosseguem o ataque. Quarta acusação: embriaguez. Quinta: corrupção. Acusações falsas, improváveis. Desesperado, o candidato não sabe o que fazer. No fim, resolve desistir. Faltavam-lhe, segundo os jornais, virtudes básicas para concorrer ao cargo. Na carta de desistência escreve: "Subscrevo-me com estima, em tempos um homem decente, mas agora Mark Twain, mentiroso, ladrão, difamador, bêbado, corrupto".

O jornal News of the World, que durante décadas satisfez a fome de escândalo dos ingleses, seguia à risca essa lei de que não há nada, dentro das imensas possibilidades de sujeira ao alcance do ser humano, por que o público não tenha interesse. Quando se trata de espiolhar a vida do próximo, não há muita gente que mantenha o sangue-frio e guarde deferências.

Mas pior do que isso: convencidos de que a receita era infalível, os repórteres do News of the World não se limitaram a relatar escândalos. Pensaram que estavam autorizados a tudo para obter e fabricar as histórias de sarjeta de que precisavam, incluindo, como se viu agora, escutas ilegais. Mais baixo não é possível descer.

Fico sempre estupefacto quando encontro, em certos jornais portugueses, notícias sobre as dívidas fiscais de pessoas com visibilidade pública, a frontaria das respectivas residências ou outros aspectos puramente privados. Mas não tenho ilusões: sei que o que público quer, o público recebe. Olhem, por exemplo, para a história das televisões privadas em Portugal.

É justamente porque acredito num forte escrutínio público (sublinho: público) dos decisores políticos que defendo um não menos forte direito à sua privacidade, a única garantia de que essas pessoas terão a liberdade necessária para exercer as suas funções.

O encerramento do News of the World é uma boa notícia. Mas não é, ao contrário de alguns optimistas, o fim desse jornalismo que o império Murdoch alimentou durante décadas. Não nos enganemos sobre isso. E enquanto tivermos dúvidas, insistamos o mais possível nessa diferença entre o público e o privado, quer seja nos políticos, quer nas chamadas figuras públicas. Isto requer uma educação colectiva ficada sem a qual mandará o dinheiro e o mais básico populismo. Jurista

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