O legado de Afonso Costa e as manobras de José Sócrates

Público 2011-04-22 José Manuel Fernandes

Muita coisa se tem escrito sobre o centenário da Lei da Separação do Estado e das Igrejas, mas não me lembro de a ver referenciada como uma das armas políticas criadas por Afonso Costa para garantir a hegemonia dos radicais na chamada "República Velha". Porém, como Vasco Pulido Valente explicou, a Intangível - assim ficou conhecida a lei, e não por acaso - foi bem mais do que "o mais odioso acto da facção jacobina": foi também um instrumento para os exaltados da propaganda submeterem os moderados e tomarem conta do movimento republicano e do Estado. Ora a forma como os radicais então manobravam tem curiosos e significativos paralelos com as intrigas políticas dos dias que correm.
O objectivo político da Intangível não era apenas o de humilhar os católicos - algo que conseguia na perfeição, ao colocar os padres na dependência de uma "pensão" do Estado, ao proibir qualquer cerimónia litúrgica depois do sol-posto ou ao impedir os religiosos de usarem em público as suas vestes talares, entre muitas outras disposições. Com a Intangível Afonso Costa "deixou os moderados num impossível aperto", obrigando-os a optar entre o seu campo e o "do inimigo". Com a Intangível traçou uma espécie de "linha na areia" que separava os que estavam a favor ou contra a República, colocando os primeiros sob o comando dos radicais e tornando impossível qualquer compromisso com os demais.
José Sócrates, sem ter o calibre intelectual ou o génio político de Afonso Costa, parece inspirar-se no mesmo tipo de processo político. A todo o momento trata de estabelecer a "linha na areia" que separa os "patriotas" dos inimigos do "bom povo socialista": ontem foi estar ou não com o FMI, hoje é estar ou não com o seu modelo muito próprio de "Estado social", no limite é, como perguntou em Matosinhos, "estar ou não estar com ele". O PS já caiu nesta armadilha e rendeu-se-lhe num congresso transformado em cerimónia ritual coreografada ao estilo de Leni Riefenstahl.
É certo que o PS ainda não é o partido da "formiga branca", as milícias radicais que atemorizavam os adversários políticos nas ruas da Lisboa da I República, mas nas suas tropas não faltam hooligans modernos, hoje travestidos de bloguers anónimos que pontificam em sites como o Câmara Corporativa e deixam o seu ódio e ameaças vertidas pelas caixas de comentários da imprensa online. Sócrates também não teorizou, como Afonso Costa fez em Santarém em Novembro de 1912, o assalto dos militantes do partido aos lugares no Estado, mas os seus homens estão por todo o lado, ocupando postos na administração e nas empresas públicas, formando o grosso do exército fiel e dependente que foi agarrar nas bandeirinhas de Portugal para a celebração de Matosinhos.
Há um século, os republicanos sabiam que nunca poderiam, em eleições livres e abertas, ganhar uma maioria, pelo que trataram de fazer uma lei eleitoral que fez diminuir o número de eleitores por comparação com os tempos da Monarquia Constitucional. Hoje não é possível mudar as leis eleitorais mas é possível afastar os eleitores das urnas. É por isso que os socialistas, que sabem que não podem ganhar em circunstâncias normais, tudo estão a fazer e tudo farão para que a 5 de Junho a abstenção seja a mais elevada possível, única forma de alimentarem a esperança que os votos do seu núcleo duro sejam suficientes. Já seguiram a mesma táctica nas Presidenciais, e com sucesso, pois trata-se de um recurso tão simples como rasteiro: fazer crer que são todos iguais naquilo que os políticos têm de mau, isto é, na mentira, no compadrio e no nepotismo. Criarão os casos que forem necessários não para provar que Sócrates não é mentiroso, pois aí não teriam sucesso, mas para dar a entender que todos os demais são igualmente mentirosos. Não podendo fazer esquecer os casos da licenciatura, do Freeport, da Cova da Beira, das casinhas na Guarda ou da casona na Rua Braamcamp, tentarão descobrir uma qualquer Casa da Coelha ou um simples pionés desviado. Como os republicanos de Afonso Costa, há muito que ao grupo de Sócrates lhe é indiferente as regras democráticas ou o prestígio do regime. Pior: neste momento interessa-lhes mesmo o desprestígio do regime e a descrença na democracia. Frases de aliados, como as do bastonário da Ordem dos Advogados, a pedir uma "greve à democracia", provam-no.
Não temos hoje a violência física dos carbonários ou da "formiga branca", mas instalou-se um clima de violência moral alimentada por uma propaganda insana e insulto fácil. Nas eleições de Junho de 1915, que consagraram a ditadura dos "democráticos" de Afonso Costa, só votaram 280 mil dos seis milhões de portugueses; nas eleições de 5 de Junho quantos menos portugueses votarem (à semelhança do que se passou nas Presidenciais), mais hipóteses tem o partido de Sócrates de sobreviver. E a verdade é que o aumento irreal do número de indecisos nas sondagens que vão sendo conhecidas - um aumento que contraria o que é habitual em semanas pré-eleitorais - mostra que o estratagema pode estar a ser bem sucedido.
Sócrates não anda nos velhos carros eléctricos, e por isso não se verá forçado a saltar por uma janela com medo do povo, como um dia sucedeu ao também odiado Afonso Costa, mas tal como o seu remoto antecessor também viu na instrumentalização de uma crise internacional a sua oportunidade. O chefe republicano impôs a entrada, desnecessária, de Portugal na I Guerra para assim conseguir a hegemonia definitiva dos radicais entre os diferentes partidos republicanos, congeminando o governo da União Sagrada; o caudilho socialista imaginou que de PEC em PEC iria conseguir amarrar a oposição ao seu navio à deriva. Costa reunia a "família republicana", Sócrates tratava de cumprir o sonho mexicano do "partido indispensável" e irremovível do poder.
Os custos para o país dos delírios de Afonso Costa foram imensos - potenciados, para mais, pelo clima de violência que marcou a I República. Os custos para Portugal dos erros, da obstinação e do populismo de Sócrates já estão a ser muito pesados - e verdadeiramente não se sabe se o país está mesmo determinado a pôr-lhes fim. Até porque há em Portugal uma preocupante menoridade democrática: em mais de 150 anos de eleições, só uma vez um primeiro-ministro em funções foi derrotado. Aconteceu com Santana Lopes, e por muito menos do que hoje deveria ser suficiente para afastar Sócrates. Só que ele não liderava um partido com raízes longínquas no republicanismo da propaganda.
Mesmo assim, apesar de todas as imensas diferenças entre as duas épocas, a simples permanência do estado de bancarrota então e agora deve fazer-nos meditar sobre onde desembocaram as manobras de Afonso Costa e seus seguidores. Jornalista

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