Portugal e a tragédia grega

Diário de Notícias, 2008-12-29
João César das Neves
Professor universitário naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Nas últimas semanas a Grécia tem sido palco de graves distúrbios, resultado do profundo descontentamento social, sobretudo dos jovens. Será que algo parecido pode acontecer em Portugal? Não faltam os que fazem tais previsões, mas a resposta deve ser claramente negativa.

Em momentos de crise é difícil manter o sentido das perspectivas, mas é precisamente nessas alturas que isso é mais importante. Um furacão parece-se muito com um dia de tempestade, mas quem confundir os dois vai alarmar-se sem razão.

Existe sem dúvida grande descontentamento em Portugal. Jovens licenciados sem emprego ou na precariedade, funcionários públicos com perda de benefícios, empresas perto da falência, imigrantes, desempregados confessam intensa desilusão e chegam a manifestar-se nas ruas. Pior ainda, o nosso país está endividado e a entrar em recessão. Estes são os principais motivos das tais conjecturas sobre futuros protestos lusos. Mas é um erro relacionar explosões sociais com problemas económicos.

A Grécia está a crescer a 3,3%, o dobro da Zona Euro (1,6%) e mais do triplo de Portugal. O desemprego, ao nível do nosso, desceu acentuadamente nos últimos quatro anos. Apesar da desaceleração, a Comissão não prevê uma recessão grega em 2009. Esta relativa prosperidade é causa dos desacatos. Já em Maio de 1968, a França crescia acima dos 5%, nível que nunca voltou a atingir. Pelo contrário, quem vive dificuldades tem mais que fazer do que manifestar-se.

Os atentados brutais e criminosos da Grécia não podem ser uma reacção às condições económicas. Queimar automóveis, partir montras, saquear lojas e agredir polícias é muito pior para a crise que qualquer derrocada financeira internacional. O problema não se coloca a esse nível.

Para acontecerem os tumultos gregos, mais que descontentamento ocasional, são necessários dois elementos principais. O primeiro é uma desilusão profunda e recalcada, desconfiança latente e generalizada, raiva surda e intensa. Se ouvirmos as conversas de café e comentários de blogs parece que tal estado de espírito já domina em Portugal. Muito disso é a tradicional resmunguice nacional. Mas algo começa a despontar. O início foi o sonho guterrista de uma prosperidade sem custos. Lançou-se então o endividamento nacional e a bola de neve orçamental que já fez fugir dois primeiros-ministros, cair um terceiro e oprime o actual. Os protestos de professores e os medos dos jovens, bem como as esperanças de PCP e BE, clivagens no PS, crise do PSD e oportunismo do PP nascem daqui.

Mas é crucial notar as diferenças entre a tempestade lusitana e o furacão helénico. Na Grécia a desilusão, desconfiança e raiva são muito mais antigas e profundas, num país muito mais difícil de governar. Teríamos de descer alguns degraus de decadência para chegar a esse estado, que atingimos em 1580, 1839, 1908 e 1925.

O segundo elemento, indispensável para passar dos sentimentos e palavras aos actos, é uma liderança clara. O que começa espontaneamente só permanece se for planeado. Tal orientação, conseguida na Grécia pelo antigo e poderoso movimento anarquista, ainda falta por cá. Em Portugal até os extremistas são boas pessoas.

Tudo somado, as diferenças são muitas. Mas, apesar das distâncias, podemos seguir pelo caminho que conduz ao caos grego. Isso depende de uma decisão crucial para o nosso futuro comum: que atitude tomar perante as dificuldades.

O que quer que aconteça, vêm aí tempos dolorosos. Como povo, como lidaremos com eles? Vamos chorar, recriminar as autoridades, exigir e protestar? Ou enfrentar com seriedade e força o que vier, aceitando o sofrimento como algo que nos compete, vencendo os obstáculos? O mundo e a história não nos devem direitos e regalias. As promessas dos políticos são diversão de feira. O nosso destino não depende deles, mas do que fizermos com os nossos braços, as nossas cabeças, a nossa unidade. É fácil e cobarde queimar automóveis, partir montras, saquear lojas. O que é difícil é construir o futuro. Ter carácter diante dos desafios.

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