Um texto azedo: estaremos enganados ao defender a liberdade?

José Manuel Fernandes
07.01.2008, PÚBLICO
António Barreto esteve exilado. Vasco Pulido Valente conheceu por dentro, no ambiente familiar, o que implicava, e custava, discordar de Salazar. Francisco Pinto Balsemão lutou pela liberdade de imprensa num Parlamento onde a ideia de liberdade não morava. Miguel Sousa Tavares é filho do homem que, no Largo do Carmo, foi decisivo no 25 de Abril e da mulher do poema Não podemos ignorar.
Este fim-de-semana, no PÚBLICO e no Expresso, e também na SIC, todos se pronunciaram contra o ímpeto normativo - e impositivo - do actual Governo. Barreto foi ao ponto de se questionar sobre se José Sócrates não seria fascista, Balsemão chamou fascista à lei anti-tabagista e até vimos Vasco Pulido Valente a defender a liberdade de crítica da Igreja Católica e a interrogar-se sobre se o Bento XVI não teria razão quando disse que o catolicismo poderia ter de resistir quase clandestinamente.
Nenhum destes opinion makers possui razões especiais para se opor a Sócrates, se pensarmos apenas no que é a superfície da ideologia e da economia. Mas todos eles têm muito mais mundo, leram muito mais livros, passaram por experiências políticas muito mais intensas do que a "fatalidade" do défice ou a co-incineração. O que os leva então a este extremismo?

Há uma explicação simplista: são fumadores (nem sei se todos serão). Admito que, nalguns casos, isso possa ter tido alguma influência, apesar de ser mais o que os separa pessoalmente do que aquilo que os une. Mas se querem utilizar o argumento do fumo, então deixem-me juntar-me ao grupo, porque não sou nem alguma vez fui fumador. O tema, para mim, é secundário: o que me incomoda é o essencial do que escrevem, o núcleo do que está em causa. E esse essencial gira em torno do que o Estado pode e deve regular, de até onde o Estado pode ir.
O Estado, como deveria ser assumido por todos, vai até onde o deixamos ir. Como instrumento do poder político, segue a tendência de todos os poderes: tornarem-se irrestritos. Não é por acaso que o que distingue as democracias liberais das iliberais não é o império da lei (Salazar até o respeitava, só que as leis eram dele...), mas o princípio do governo limitado. Sem este princípio, as democracias tornam-se facilmente na imposição da vontade da maioria sobre a minoria. Ou, como escreveu Stuart Mill, por vezes nem é necessário que um governo queira impor a sua vontade: a própria sociedade pode castrar a diferença, logo a liberdade. A censura social chega a ser mais opressiva do que a perseguição de uma polícia.
Um exemplo protagoniozado pelo PÚBLICO: a forma como noticiou, distorcendo, a penalização a José Diogo Quintela por conduzir com álcool a mais no sangue. Não estando em causa a falta, empolar as consequências tornou-se tentador. Assim, o facto de ter preenchido os documentos no interior de uma carrinha da PSP transformou-se em detenção e, para quem só visse a fotografia, editada fora de contexto, em prisão.
Um erro transformou-se em muito mais do que isso, porque se gerou uma reacção de opróbrio social da qual o PÚBLICO tinha obrigação de se distanciar, ao contrário do que sucedeu. Uma reacção tão forte que acabou por interferir no princípio de secura e rigor do próprio noticiário.

Daí que tenhamos de condenar todas as leis ou movimentos sociais de que possa resultar a condenação sumária, e correspondente punição, de ideias, mas também de comportamentos, que mesmo podendo estar errados têm direito a existir.
Mas, se ninguém é senhor da verdade, a liberdade irrestrita não é, em nenhuma circunstância, boa conselheira. Daí que Stuart Mill tenha temperado algumas das suas opiniões por influência de Samuel Taylor Coleridge (um poeta e filósofo sobre o qual escreveu um longo ensaio) e integrado elementos conservadores que o distanciaram claramente do ideal jacobino de criar um "homem novo", ou uma "ordem social nova", ao reconhecer que os sistemas sociais tinham virtudes que asseguravam a sua longevidade. Daí que nesse ensaio On Coleridge tenha escrito que "um Estado nunca poderá, nem deve esperar poder, pelo menos enquanto não ocorrer uma profunda mudança na humanidade, livrar-se por muito tempo da dissensão interna".
Claro que se pode tentar mudar esta situação mudando o homem, como fizeram os totalitarismos do século XX, ou considerar que esta dissensão é, em si mesma, um princípio de liberdade e progresso, colocando então o pluralismo de opiniões entre as virtudes sociais, como fez Isaiah Berlin.
Ora, e disso estou certo, se estivermos com Isaiah Berlin, não estaremos enganados a defender a liberdade.

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