A tradição

Vasco Pulido Valente | Público | 24/01/2014

O sr. Hollande assinou o último certificado de óbito da esquerda, seguindo, como lhe competia, a tradição.

Com lágrimas, com irritação, com desespero, a esquerda ouviu esta semana François Hollande renunciar ao socialismo. A esquerda tem má memória. Desde o princípio que o socialismo se reduziu a conceder alguns leves benefícios aos trabalhadores, que se foram acumulando, e que se devem em parte considerável à mais pura direita.
Quem começou esta política foi, de resto, o príncipe Bismarck, antes de 1890, para conter simultaneamente o SPD e o liberalismo alemão que pretendia renascer contra ele. Durante a Grande Guerra (a I), o partido de Lenine e Estaline estabeleceu uma ditadura que se dizia "comunista", mas que no fundo não passava de uma nova tentativa de "modernização" do império do czar, executada com uma particular ferocidade.
Depois de 1918, ainda apareceram meia dúzia de imitadores. Na Hungria, Béla Kun inventou uma "República Soviética", que durou cinco meses e quase não passou de Budapeste. Em Munique, também foi proclamado o "comunismo", que provocou uma pequena guerra civil e desapareceu em menos de um mês. Pela Europa ocidental, as coisas continuaram na mesma. O trabalhista MacDonald governou a Inglaterra de Janeiro a Novembro de 1924 e, depois, em coligação com os conservadores, de 1929 a 1935, uma aventura que lhe valeu a expulsão do partido. Em Espanha, a URSS tomou o poder por interposta pessoa a partir de 1937 e em 1939 perdeu a guerra. E, em França, Léon Blum conseguiu aguentar um ano, meio paralisado pelos radicais da sua "Frente Popular", mas sempre deixou à "classe operária" o dia de 8 horas, mais duas semanas de férias pagas.
Em 1945, a Europa de Leste ficou sob a tutela da URSS de que só se conseguiu livrar em 1989. No Ocidente passaram pelo governo, se a América aprovava, dezenas de partidos nominalmente "socialistas", que sobretudo se esforçaram por promover a prosperidade do capitalismo, compensando aqui e ali os trabalhadores com o famoso Estado social, a que se reduziu em última análise a utopia do século e que hoje parece perigosamente perto da dissolução. O sr. Hollande não fez mais do que os seus predecessores. O "socialismo", nas suas muitas variantes, nunca existiu e nunca chegou verdadeiramente a ser a ideologia dominante de nenhum Estado constituído. A retórica de intelectuais sem emprego não substitui a acção, como milhares de vezes se provou. O sr. Hollande assinou o último certificado de óbito da esquerda, seguindo, como lhe competia, a tradição.

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