Só por confissão

Pedro Lomba 
Público, 22/01/2013

É uma história peripatética, nefasta para ele. Para nós pode ser uma fábula moral sobre o tempo infinito que leva uma pessoa a convencer-se. Ontem mesmo, enquanto investigava para esta coluna e depois de Lance Armstrong já ter confessado as suas trapacices a Oprah Winfrey, encontrei artigos que continuavam a explicar ou atenuar o que ele fez. Prosas em blogs, páginas virtuais, o texto de uma revista judaica lembrando que as mentiras de Armstrong podem ser justificadas perante o Talmude. Ele não é bem um mentiroso. Ou mentiu com estrondo, vinte anos, mas como outros também mentiram e, ao menos, ele pôde frutificar a sua obra solidária. Ainda um grande homem.
Então recapitulemos a farsa. Sobretudo o nosso lado da farsa, porque o interesse disto é que estava toda a gente disposta a ser o farsante de Lance Armstrong. Em 1999, quem olhasse para Armstrong no Tour de França ficava abismado. Em época marcada pelas primeiras descobertas de doping (a prisão do patrão da Festina, Willy Woet, o escândalo com Richard Virenque e Marco Pantani), Armstrong prometia tornar-se um Zaratustra. Não era o super-homem mas a superação do Homem.
O desporto individual pode ganhar uma transcendência improvável. Vítor Cunha Rego definia os homens da bicicleta como "volframistas da montanha". É escusado dizer que Cunha Rego era um romântico para quem os ciclistas eram proletários que recuperavam a liberdade com as pernas. Armstrong não era proletário. Era um CEO, fixado nos objectivos. Venceu um cancro porque disse que ia vencer um cancro. Venceu o Tour sete vezes porque disse que o ia vencer sete vezes. Especulava-se que tinha um coração superior ao de uma pessoa normal.
Não demoraram as acusações e os boatos de dopagem. Armstrong negava tudo. Não havia provas nem testes positivos. Era Armstrong contra os concorrentes. E ao contrário destes, ele continuava a ganhar. Nessa altura tornara-se visível que, com ele, o ciclismo não era "camaradas e amizade", ao contrário da música dos Kraftwerk. Permanecia a dúvida, mas impunha-se a certeza. Com tanto exame, análise, despistagem, não era possível que Armstrong se dopasse.
Passámos os anos seguintes acreditando sempre na inocência de Armstrong. O homem cria uma fundação para apoiar doentes de cancro, experimenta a redenção após o ordálio. Mas não acaba. Inquéritos, relatórios, confissões mostram que o ciclismo é um mundo mais sujo do que se imagina. O ex-colega de Armstrong, Tyler Hamilton, é "apanhado" e confessa. A seguir é Jan Ullrich. E Lance Armstrong? Numa altura em que a imundície estava a descoberto e os ídolos do ciclismo caíam um a um, seria ele o único sem mácula? Armstrong defendia-se com os 500 controlos limpos a que fora sujeito. Vai-se descobrindo que os testes de doping eram falíveis, manipuláveis, manipulados. Não provavam nada.
Entretanto, a união internacional de ciclismo investiga Armstong, que começa a contribuir financeiramente para a organização para eliminar suspeitas. A agência americana antidoping investiga Armstrong. Os antigos colegas denunciam Armstrong. O caso contra o ciclista torna-se sólido. No Verão de 2012 Armstrong lamenta a "caça às bruxas" e diz que desistirá de refutar as acusações. Desistira ele da sua inocência? E não seria isso ser culpado?
Chegados aqui, a única conclusão razoável era admitir que Lance Armstrong era um produto da "cultura do doping" no ciclismo desde os anos 90. E no entanto. Sim, e no entanto nada. Ninguém estava certo. Mesmo contra a evidência. Mesmo contra os relatórios. Estávamos nos "desconhecidos desconhecidos" do velho Rumsfeld.
Até que Armstrong contou. O que seria se não o tivesse feito.

Comentários

Francisco Melo disse…
Desejo todo bem para o ex-atleta, inclusivé, se fôr justo, o perdão. As reacções que tentam justificar o que não tem justificação - não tem justificação, mas o perdão deve estar sempre de portas abertas... -, é o fruto do ídolo que enganou, mas que não se quer aceitar (que o ídolo enganou).

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