Casa nostra

i-online Inês Teotónio Pereira , publicado em 16 Jun 2012 - 03:00
Enquanto existirem pessoas que pensam o Estado como uma entidade paternalista, seremos sempre infantis
Quando eu era criança fiz tudo o que devia fazer: subi a postes de electricidade, mergulhei entre rochas, joguei às escondida em árvores de três metros, brinquei com canivetes ao “mundo”, organizei um clube secreto que funcionava numa caverna num local secreto e assustador, fugi de casa, perdi-me na serra, escalei pedregulhos enormes à conquista de um castelo, desci escadas de cabeça para baixo, andei de bicicletas sem travões, joguei futebol na rua (o jogo só parava quando os carros buzinavam), tomei banho num mar classificado com uma bandeira “roxa”, subi a telhados, “bati ferro” em todos os baloiços que encontrei, fiz imensos disparates, apanhei sustos de meia-noite e arrisquei a minha integridade física pelo menos uma vez por dia. No entanto, parti a cabeça apenas uma vez na vida (tropecei…) e nunca, nunca, com muita pena minha, parti sequer um braço.
Os meus pais não sabem de nada disto. Nunca me perguntaram e eu nunca lhes contei. Eu arrisquei e eles também. A alternativa à ignorância era tramarem-me a vida e a minha alegre e perigosa infância e dedicarem a sua existência a perseguir-me enquanto eu brincava. E sempre com o coração na boca e sempre a pensar que o pior me poderia acontecer.
Também comi coisas incríveis, como gemadas com meio quilo de açúcar, vitaminas sem receita, pão com chocolate, tofina, leite da vaca da quinta em frente e papos-secos com marmelada ou com margarina (uma porcaria). Andei a pé que me fartei, muitas vezes à chuva e à noite, e numa idade em que achava que um homem com um saco era mesmo o “homem do saco”.
Tive sorte e prova disso é que tenho nostalgia da minha infância.
Agora, e durante um mês, estará em discussão pública um documento sobre segurança infantil – documento esse que se pode consultar no site da Direcção Geral de Saúde. Um documento importante, fundamentado, exaustivo e detalhado sobre os acidentes com crianças (até aos 18 anos), as suas causas e consequências. Esse documento define um plano estratégico para se actuar preventivamente e diminuir o número de acidentes. Tudo certo: o propósito é bom, a intenção também e o fundamento irrepreensível.
No entanto, há um detalhe: este documento diz o seguinte no capítulo dedicado aos “Acidentes dos 0 aos 4 anos em ambiente doméstico”: “Objectivo 1: Implementar a visita domiciliária nos primeiros 4 anos de vida para avaliação de risco de acidente em ambiente doméstico e educação para a saúde/segurança.”
Ou seja, propõe, este plano, que alguém enviado pelo Estado entre em minha casa e verifique se a minha casa se adequa aos meus filhos. Se a minha casa está, vá, em condições para eles viverem: se as escadas estão em segurança, os detergentes bem trancados, os remédios bem fechados, as fichas protegidas, as varandas inacessíveis, etc.
Se eu, que sou mãe deles, sei tomar conta deles; se eu, que sou mãe deles, sei zelar pela sua segurança; se eu tenho capacidade para, digamos, ser mãe deles.
Ora, existem duas coisas que eu não entendo nesta proposta securitária: com que direito e com que autoridade é que isto se faz? E como é que salvaguardam os meus filhos do perigo de eu lhes dar uma alimentação daquelas mesmo más, ou de não lhes dar banho, ou de os deitar à meia-noite ou de eles não fazerem todas as coisas que eu fiz e que são tão arriscadas?
Enquanto existirem pessoas que pensam o Estado como uma entidade paternalista, seremos sempre infantis. E no dia em que o Estado, por decreto, puder entrar em minha casa seja porque razão for, então sim, os meus filhos deixam de estar seguros.

Comentários

Anónimo disse…
Satanás também tem boas intenções, de bem, diz ele, chamando de bem ao que é mau e até chamando de mau ao que é bom (não meter-se na vida privada das pessoas). Enquanto DEUS respeita a nossa liberdade, Satanás deseja impor, reinar e destruir.

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