O amor mais forte do que o ódio - impressões do filme "Dos homens e dos deuses"

Em Outubro, a minha atenção foi despertada pela capa de duas das revistas francesas de maior difusão (L´Express e Le Fígaro Magazine) que, na mesma semana, davam grande destaque ao filme Dos homens e dos deuses, sobre os últimos momentos da vida dos monges trapistas do mosteiro de Nossa Senhora do Atlas, na Argélia, raptados por um grupo terrorista de matriz islamista, e depois assassinados em condições ainda não bem esclarecidas, em 1996. «Estes monges que agitam a França»; «Do filme ao fenómeno» - eram títulos dessas capas, que evidenciavam o extraordinário sucesso de um filme sobre a vida e as escolhas radicais desses monges. Um sucesso esperado junto do público católico, mas também um inesperado sucesso junto de não crentes, atraídos pela qualidade artística do filme (seleccionado como candidato francês ao Óscar) e, sobretudo, pelo testemunho desses homens e as questões que ele coloca sobre o sentido da vida, do amor e da morte.
O filme emocionou bispos e cardeais. O cardeal Jean-Louis Tauran, presidente do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-Religioso, qualificou-o como “um hino à liberdade e à fraternidade” (La Croix, 16/11/2010). O cardeal Barbarin, arcebispo de Lyon, afirmou nunca ter visto um filme retratar tão bem a vocação cristã extrema (o martírio por amor) misturada com a simplicidade da vida quotidiana (L´Express, 13/10/2010). Para o cardeal Vingt-Trois, arcebispo de Paris, o sucesso do filme é «a prova de que as nossas sociedades secularizadas não estão completamente imunizadas contra as preocupações existenciais, e mesmo espirituais» (La Croix, 4/11/2010).
Comentando a reacção do público francês, escreveu o jornalista Jean Sévillia: «cada projecção do filme termina num silêncio total»; «o público sai subjugado, mergulhado, numa meditação que tem algo de religioso» (Le Fígaro Magazine, 16/10/2010).
O realizador, Xavier Beauvois (não crente em busca, como muitos dos espectadores do filme), para compreender o sentido da vida monástica, aconselhou-se junto de monges trapistas e partilhou a sua vida durante algum tempo. «O período das filmagens foi para mim um perpétuo estado de graça»; «tudo era simples, límpido, fácil, evidente, estranho e belo»; «Agora, não vejo o mundo da mesma forma»; «dantes pensava que nada podia ser mudado, os irmãos de Thibirine ensinaram-me que não é assim» - afirmou (la Croix, 18/5/2010). O actor principal, Lambert Wilson considerou a experiência de todos os actores como “uma aventura profunda que os mudou”. «Assumo hoje muito melhor o facto de ser crente»; «não estou pronto a ser monge, mas gostaria de sê-lo de vez em quando» - afirmou também (La Croix, 10/9/2010).
O enredo do filme centra-se no dilema destes monges que, perante as ameaças que pairam sobre os estrangeiros que habitam a Argélia, correm risco de vida e enfrentam a decisão de deixar, ou não, o local onde vivem há anos, partilhando a vida simples e pobre da população local, a quem um deles presta serviços médicos gratuitos, numa harmonia que supera as diferenças entre cristãos e muçulmanos.
A decisão não é fácil e as opiniões começam por estar divididas. Não se fizeram monges para morrer, não são suicidas e não querem o martírio por sua iniciativa. São pessoas comuns, não são heróis sobre-humanos e querem viver. Mas, por outro lado, não querem ceder perante quem quer impor a sua vontade com a força das armas e, sobretudo, sentem que a sua missão junto daquele povo não está terminada; que escolheram partilhar a vida desse povo e com ele se querem identificar também na pobreza de quem não tem meios de fugir; que não podem abandonar esse povo aos terroristas, porque «o pastor não abandona as suas ovelhas quando vem o lobo». Não buscam a morte, mas aceitam-na como fez Jesus Cristo, porque «ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos» e porque «o discípulo não é mais do que o Mestre». Com esta consciência, chegam a consenso e reencontram a paz. Um deles afirma o que todos acabam por experimentar: «sou um homem livre, porque não temo a morte»
Alguns diálogos e algumas cenas deixam uma marca inesquecível em qualquer espectador.
Como aquela em que um terrorista pretende obter os serviços do monge médico com a ameaça das armas. O prior da comunidade, o Irmão Christian de Chérgé, dá testemunho de coragem ao começar por exigir que o diálogo com um homem armado se faça fora do mosteiro, lugar de paz. E, sobretudo, ao não ceder a essa ameaça, como se não tivesse alternativa (porque há uma alternativa à força das armas), deixando que a assistência seja prestada ao terrorista, mas sem distinção em relação à que é prestada à população local. Quando o terrorista se retira, esse Irmão diz-lhe que se celebra nessa altura o Natal, o nascimento de Jesus, Príncipe da Paz, tão estimado pelos muçulmanos. E ele pede desculpa… Mais tarde, será o Irmão Christian a reconhecer o cadáver desse homem perante os oficiais do exército (este também comete atrocidades) e com grande emoção rezará por ele diante desse cadáver.
Comovente o diálogo do monge médico e ancião, o Irmão Luc, com uma jovem a quem explica o que sente quem está apaixonado e a quem diz que sentiu isso mesmo e que, depois, sentiu um amor maior, há sessenta anos…
Também marcante é o diálogo entre o irmão Christian e outro dos irmãos que, confrontado com a escolha de ficar e correr o risco do martírio, vacila e não compreende o porquê dessa escolha. «A escolha já a fizeste há muito tempo»; «é tão louco ficar como foi louco escolher ser monge» - afirma então o irmão Christian, que o faz descobrir em Jesus esse porquê.
Os cantos dos salmos, na sua beleza e serenidade, e os seus textos não escolhidos por acaso, vão-nos preparando para descobrir o sentido do desfecho que se adivinha.
Culminante é a cena do jantar que antecede o rapto, ao som da música de Tchaikovsky, a evocar a última ceia e a presença espiritual de Jesus entre os monges, fonte da alegria que a todos invade nesse momento em que se pressagia um fim tão trágico.
O assassinato é evocado no final sem qualquer imagem de corpos degolados e trucidados (o realizador afirmou que esta sua opção se ficou a dever ao respeito para com os familiares dos monges). Sob um belíssimo cenário de neve nas montanhas do Atlas, ecoam as palavras do testamento espiritual do Irmão Christian. Nele se pede encarecidamente que a responsabilidade da sua morte não seja indiscriminadamente atribuída ao Islão e ao povo argelino, que ama profundamente. Afirma a propósito da vida eterna que espera: «Poderei imergir o meu olhar no olhar do Pai, para contemplar com Ele os seus filhos do Islão como Ele os vê, totalmente iluminados pela glória de Cristo». E perdoa ao seu previsível assassino, o seu «amigo do último minuto, que não sabia o que fazia», fazendo votos de que o encontre, também a ele, no Paraíso.
Se não por fosse por outro motivo, o facto de o testemunho destes homens chegar agora a tanta gente (em Outubro já eram quase três milhões em França), ajudando-as a aproximarem-se de Deus, faz-nos ver que esta morte não foi sem sentido e que o martírio é fecundo, como se diz desde a Antiguidade. Disse, a propósito, o monge e teólogo italiano Enzo Biachi (Avvenire, 20/10/2010) que estes homens «pertenciam a Outro» e, por isso, «falam a todos», pois é graças a pessoas como eles que é possível «acreditar que o amor é mais forte do que o ódio, que a vida é mais forte do que a morte, porque só quem tem uma razão para morrer, tem uma razão para viver».
 Pedro Vaz Patto 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António