Privacidade e sigilos

Público 2010-02-19 Luís Campos e Cunha

Tenho um grande temor com os novos métodos de vigilância a que todos, quer queiramos quer não, estamos sujeitos


Um dos aspectos mais aterradores da sociedade actual é a falta de privacidade. Em tempos, mais precisamente em 2004, defendi a manutenção do sigilo bancário e o fim do sigilo fiscal como mais apropriado para combater a fraude fiscal. Recentemente, três deputados do PS, com grandes responsabilidades no grupo parlamentar, voltaram a sugerir tal medida. Agora que a poeira caiu e a discussão do poder dentro do grupo parlamentar passou, calmamente, vale a pena revisitar a questão do fim do sigilo fiscal.

Antes de mais, tenho uma grande preocupação e, porque não dizê-lo, um grande temor com os novos métodos de vigilância a que todos, quer queiramos quer não, estamos sujeitos. Não sou o único a partilhar tais preocupações mas quase. Um qualquer sobressalto político pode desencadear uma onda de vigilantismo (não sei se a palavra existe) sobre pessoas incómodas e pode tornar a nossa vida colectiva num inferno sem precedentes. Isto é verdade em Portugal, como em qualquer outro país tecnologicamente bem equipado. E, não nos esqueçamos, os nazis também foram eleitos.

As câmaras de vigilância por todo o lado, o "plástico" como meio de pagamento, a via verde, a inexistência de segredo de justiça, a facilidade técnica com que se realizam escutas telefónicas, ou, simplesmente, o fim do sigilo bancário fazem-me temer o pior. Um dia.

Não há privacidade e alguém, com poder e determinação, facilmente poderá chantagear, silenciar e perseguir quem melhor entender, sem que a maioria dos cidadãos tenha disso consciência. E não vale a pena pensar que somos honestos e nada temos a esconder: a privacidade é sempre para esconder e é ilegítimo presumir que, por isso, se tenha praticado algo de ilegal. Além disso, o possível vigilantismo, já de si ilegal, não hesitará em distorcer os factos e usá-los como entender.

A conta bancária, a que o fisco tem acesso quase irrestrito, tem a nossa vida toda na coluna das despesas: onde esteve, onde almoçou, o que comprou, os médicos que consultou e as análises que mandou fazer, etc. Embora ao fisco, para saber se pagámos os impostos, só lhe devesse interessar a coluna das receitas: quem, quando e quanto nos pagou. Quanto ao sigilo bancário, estamos conversados, acabou para sempre. Temos apenas que pagar em dinheiro aquilo que não queremos que outros saibam: se tiver uma doença grave e não gostar que tal se saiba, pague em notas.

O sigilo fiscal é diferente. Porque essa informação é, grosso modo, conhecida dos nossos amigos: onde trabalhamos, quanto ganhamos e o estilo de vida que temos. O fim do sigilo fiscal revela apenas com precisão, em princípio, aquilo que os nossos conhecidos já adivinham. Aliás, as pessoas com altos cargos públicos têm a obrigação de o revelar e quem quiser saber só tem que ir ao Tribunal Constitucional. Já agora, alguns políticos não entregaram anualmente tal declaração, como deviam, e, pasme-se, nada aconteceu.

Antes de acabar com o sigilo fiscal devemos pensar (coisa difícil em política) nos termos exactos em que tal pode acontecer. Desde logo, temos de decidir que informação deve estar disponível. A declaração do IRS tem apenas os rendimentos do trabalho. Em certo sentido, alguém cumpridor das suas obrigações pode não pagar IRS e ser muito rico, porque os seus ganhos são de capital, ou seja, juros e lucros. Todos os rendimentos deverão estar disponíveis para não discriminar uma fonte de rendimentos em relação a outra.

Segundo aspecto importante, nunca deveria estar disponível toda a declaração de impostos, porque lá vêm os descontos com doenças, por exemplo. Mais uma vez, é o problema da intimidade que está em causa, o que é mais importante do que a fuga a algum imposto ou o vigilantismo de certas pessoas. Esta excepção não está prevista no caso das pessoas que detêm altos cargos.

Terceiro, há que decidir quem pode ter acesso. Se restringimos muito, acaba o efeito dissuasor de fuga aos impostos; se abrimos demasiado, a informação pode ser utilizada por máfias internacionais. Uma consulta à Judiciária seria da mais elementar precaução.

Quarto aspecto, que tem também a ver com quem acede a essa informação: deveria haver um registo de quem quer aceder, sendo o próprio informado sobre quem acedeu. Seria importante um compromisso sério dos jornalistas de não publicitarem tais informações para segurança das pessoas. Exceptuar-se-iam as situações de manifesto interesse público e não a simples coscuvilhice. Será possível? Duvido.

Quinto, há que ter em conta o que se faz noutros países. De facto, alguns, mas muito poucos, países têm total ausência de sigilo fiscal. A experiência deles é importante.

Por último, há que escolher o momento de entrada em vigor do fim do sigilo fiscal. Nas actuais circunstâncias não parece ser o momento adequado: recentemente a confiança no sistema bancário esteve muito abalada e a fuga de capitais pode acontecer por pânico de tal medida; e, mais importante, as máfias internacionais entraram no nosso país com grande impunidade. Possivelmente, já não haverá o momento adequado.

Ponderar estes factores e responder a todas aquelas questões (e mais algumas outras de carácter operacional) é fundamental antes de sequer se pensar em propor o fim do sigilo fiscal. Mas, se alguma vez tivesse de escolher, entre o fim do sigilo bancário e a acabar com o sigilo fiscal não teria muitas dúvidas em escolher este, com as devidas precauções. Em nome da privacidade.

Professor universitário

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