Casamento 'gay' e imperio galáctico

Diário de Notícias, 20081006

João César das Neves
Professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

Hoje a política segue as regras dramáticas dos filmes de aventuras. Como o nosso tempo cresceu à sombra de 007, Indiana Jones, Star Wars e outras ficções, elas modelaram a nossa sensibilidade. Os exemplos poderiam multiplicar-se, mas a tragicomédia que agora se encena em Portugal à volta da "magna" questão do casamento dos homossexuais parece um caso de antologia.

A história começa com um pequeno punhado de jovens e intrépidos heróis que desafia a instituição vetusta e paralisante, atrevidamente lançando uma provocação. Os espectadores sustêm a respiração perante a audácia, intimamente aplaudindo a bravura. Entretanto, naturalmente, a sociedade gorda, preconceituosa e estúpida, guincha de horror face à justa proposta. A decisão, porém, será tomada nos cumes irrespiráveis do poder, onde os heróis não podem entrar, apesar de aí possuírem simpatias. O supremo líder, que no fundo é boa pessoa, até concorda com a causa nobre. Ele sabe que o futuro pertence aos revolucionários e que a sociedade apodrecida vai morrer. Mas para já tem de ceder aos intrincados equilíbrios e acaba por adiar o confronto para a próxima legislatura. Desta vez a justiça foi sufocada mas não percam o segundo episódio.

Nos dias que correm a política tem cada vez menos a ver com os reais problemas, sendo crescentemente um espectáculo de entretenimento. Não admira que adopte as regras do género. Portugal tem gravíssimas dificuldades de vária ordem. Exactamente quais são e como se resolvem é assunto menor da actualidade, entretanto obcecada com temas laterais, fictícios ou simplesmente tontos, mas muito dramáticos: lutas internas do PSD, eleições americanas, um empolado surto criminal e, claro, o casamento dos homossexuais.

Este último é o mais curioso porque, falho de conteúdo, tem os contornos largamente determinados pelas formas cinematográficas. A questão é introduzida como um decisivo combate de civilização a favor da justiça e dos direitos fundamentais. Mas a pose é oca e infundada, pois as mesmas forças políticas têm feito tudo o que podem para desqualificar o casamento como força válida na sociedade. Além disso, se é indispensável regularizar a situação doméstica desses casais, porque não da miríade de outras circunstâncias familiares e relacionais que não possuem cobertura jurídica? Apesar de tudo o número de coabitações de irmãos, tios, sobrinhos ou amigos é maior que a dos gays, para não falar dos casos de poligamia, incesto e pedofilia, que a mesma sociedade (ainda) insiste em repudiar. Porquê esta obsessão com uma situação particular?

O Estado não regula o amor entre pessoas. Se o fizesse teria de criar muitos contratos além do casamento. A lógica da instituição matrimonial vem das implicações estruturais na sociedade da união fecunda entre mulher e homem, incomparáveis com as de qualquer outra. Escamotear isto e tratar o contrato como um direito do amor mútuo é uma tolice.

O enredo baseia-se num silêncio ensurdecedor. Todos os participantes no debate fingem ignorar um facto central, que traz o picante ao drama. A grande maioria da população considera a homossexualidade uma depravação, um acto intrinsecamente desordenado e contrário à natureza. Não se trata de um preconceito, mas de uma opinião válida e legítima a ponderar. E não deve ser confundida com homofobia, que é agressão ou discriminação de pessoas. É possível discordar fortemente da orientação de alguém, tratando-o com respeito e consideração. É isso a democracia e é assim que somos chamados a lidar com fumadores, racistas, poluidores.

Infelizmente não são tratados assim os que se opõem à reforma. No caso dos homossexuais a única atitude admissível parece ser a aceitação do dogma intocável da sua perfeita equivalência com sexualidade normal. Assim, o combate pelo casamento gay representa um teste a esse sacrossanto mandamento da equivalência. Deixa de ser um debate político, para se transformar em cruzada quasi-religiosa. O assunto toma a emoção de Luke Skywalker enfrentando o Império Galáctico.

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