O homem que derrotou o império do mal

Expresso, 08089

Miguel Sousa Tavares

Os estalinistas mataram tanta gente como os nazis, mas a ditadura intelectual da esquerda ocidental não dava a esses mortos distantes e sem nome o mesmo valor que dava às vítimas do nazismo. Foi isso que ‘O Arquipélago do Gulag’ tornou insuportável a partir de então


Sinal dos tempos e do país em que nos estamos a tornar, a morte de Alexander Soljenitsin não ocupou mais do que um curto obituário, preenchido com banalidades, mesmo nos jornais diários ditos “de referência”. A «silly season» jornalística - agora que, felizmente, o petróleo está a descer e não há incêndios - está toda devotada às aquisições do Benfica e às andanças algarvias do ‘jet seis’, cuja palpitante existência sustenta várias revistas da especialidade. Não sobrou assim espaço nem ousadia para imaginar que a morte do homem que abalou o Império Soviético e lhe deu a primeira machadada de morte pudesse interessar os leitores portugueses, nem ao menos como registo histórico.

E, todavia, raríssimos foram aqueles que no seu tempo de vida tiveram tamanha importância histórica como Soljenitsin. Ele não foi apenas o Prémio Nobel da Literatura, o autor de uma vastíssima obra (em cuja compilação em trinta volumes trabalhou até ao dia da sua morte, domingo passado), o escritor em cuja obra está presente e quase sufocante a imensidão e solidão da Rússia de sempre, na senda de Tolstoi, Pasternak, Tchekov, Bulgakov ou Nabokov, como foi, acima de tudo, uma testemunha vital e impiedosa dessa mancha negra na história da humanidade que foi o estalinismo. E só para ter uma vaga ideia do que representava enfrentar o estalinismo na própria União Soviética, basta recordar que vivemos num país onde, dezassete anos passados sobre a implosão da URSS, o nosso Partido Comunista, herdeiro jamais infiel do estalinismo, continua a achar que a Coreia do Norte talvez seja uma democracia e que o Governo de Angola defende os direitos humanos e combate a corrupção.

Quando Soljenitsin publica em França ‘O Arquipélago do Gulag’, já tinha ganho o Nobel e já era um escritor consagrado no Ocidente, onde algumas das suas principais obras, como ‘O primeiro círculo’, ‘O Pavilhão dos Cancerosos’ ou ‘Agosto, 1914’ o tinham suficientemente revelado. Mas tudo começara antes ainda, em 1962, quando deu a ler o manuscrito de ‘Um dia na vida de Ivan Denisovitch’ a Andrei Tvardosky, membro da direcção da Academia das Letras soviética e do Comité Central do PCUS. Vivia-se os anos de Nikita Khrustchov, a suave destalinização, e, apoiado por Tvardosky, Soljenitsin conseguiu que Khrustchov autorizasse a publicação do pequeno livro, relatando a vida de um prisioneiro político nos campos de concentração estalinistas - onde ele vivera oito anos, de 49 a 57, condenado depois de o KGB ter interceptado uma carta sua a um amigo onde criticava Estaline. De nada lhe valera então o seu estatuto de herói de guerra, com várias condecorações ganhas a combater a invasão nazi. Outros milhões de russos que, como ele, seguiram directamente da guerra para os campos de concentração do estalinismo, fizeram do livro um sucesso instantâneo, com o valor de um resgate da ignomínia sofrida.

Duraram pouco as suas tréguas com o regime. Soljenitsin não aproveitou para se submeter à linha oficial do Partido nem à sua suposta nova face branda e, tendo-se tornado praticamente o único símbolo da dissidência no Ocidente, a sua sorte ficou traçada. Em 1974, a publicação do ‘Arquipélago do Gulag’, em França, deixava tudo perfeitamente claro: de um lado, absolutamente sozinho, Soljenitsin; do outro, a URSS. Jamais houve luta tão desigual e jamais a obstinação e a coragem de um só homem haviam conseguido pôr à defesa uma força tão desmedidamente superior. Vários anos antes, um outro escritor russo, Ossip Meldeston, morto num campo estalinista, deixara inédito um livro cujo título se aplicava como uma luva ao combate desigual de Alexander Soljenitsin: ‘Contra toda a esperança’. Era isso que ele se propunha fazer, com toda a lucidez e sem nenhuma esperança. Por dever de memória.

Na introdução de ‘O Arquipélago do Gulag’, Soljenitsin escreveu: “Com o coração despedaçado, abstive-me durante anos de publicar este livro, todavia já pronto. O dever para com os vivos impunha-se ao dever para com os mortos”. Foi só quando o KGB deitou mão a uma cópia do manuscrito, que ele se apressou a fazê-lo chegar ao Ocidente e ser publicado. ‘O Arquipélago do Gulag’ é um relato exaustivo e esmagador das vidas destroçadas de centenas, milhares de prisioneiros levados para o universo concentracionário estaliniano, conhecido como o Gulag, ao longo do imenso território soviético, entre 1918 e 1956. Ele dedica-o “àqueles a quem a vida faltou para contarem estas coisas. E que me perdoem por não ter visto tudo, não ter guardado tudo, não ter adivinhado tudo”. Mas o que ele viu, o que ele guardou, o que ele adivinhou e o que ele contou, abalou a União Soviética e o que restava do mito da libertação comunista. E caiu na pior altura para o regime comunista, então já liderado pelo sinistro Leonid Brejnev e tendo como principal ideólogo e guardião da ortodoxia Boris Ponomarev - o convidado de honra dos primeiros congressos em liberdade do Partido Comunista Português.

Em 1974, a Revolução Portuguesa, que Cunhal garantira que jamais degeneraria numa “democracia parlamentar burguesa”, do tipo ocidental, dera aos comunistas do Ocidente, e até certa altura ao próprio PCUS, a ilusão de poder restaurar nestas paragens uma Frente Popular, ao estilo francês e espanhol dos anos trinta, que mais tarde abrisse caminho ao clássico golpe leninista da tomada de poder pelos comunistas. Um ano antes, caíra às mãos ensanguentadas de Augusto Pinochet a Frente Popular chilena, que dera à causa comunista novos mártires e novas simpatias. O estalinismo e a perpetuação dos seus sinais essenciais na era de Brejnev estava ainda longe de estar suficientemente conhecido e denunciado. É certo que as terríveis purgas dos tempos do “pai dos povos”, aquele clima de absoluto terror e abjecção moral tão brilhantemente exposto, por exemplo, nesse fantástico filme de Mikhalkov, ‘O Sol Enganador’, tinham já passado à história. Mas o estalinismo nunca fora exposto, abjurado, nunca pedira perdão, ao contrário da Shoah. Quando os primeiros relatos das purgas, dos julgamentos-fantoche e dos campos de concentração do Gulag começaram a chegar ao Ocidente a esquerda estabeleceu uma espécie de bloqueio mental à verdade. Denunciar o estalinismo era ser anticomunista e, como dizia Sartre, “um anticomunista é um cão. É um cão e daqui não saio!”. Os estalinistas mataram tanta gente como os nazis, mas a ditadura intelectual da esquerda ocidental não dava a esses mortos distantes e sem nome o mesmo valor que dava às vítimas do nazismo. Foi isso que o ‘Arquipélago do Gulag’ tornou insuportável, a partir de então. De aí em diante, ninguém mais pôde dizer que não sabia, não tinha lido, não tinha adivinhado.

Sem saber o que fazer dele, o regime expulsou Soljenitsin da Rússia. Exilado, ele continuou o seu combate contra o sistema soviético, sem nunca se sentir atraído pelo capitalismo, que, tal como o comunismo, via como uma excrescência à alma eslava, importado do Ocidente para desgraçar a Rússia. Regressaria em 1994 para continuar, lúcido e obstinado, a trabalhar até ao último dia e morrer uma misericordiosa morte fulminante, após “uma vida difícil, mas feliz”, como a resumiu a sua mulher. Sozinho, contra toda a esperança, foi decisivo para mudar o destino de um país que atravessa oito fusos horários, de Vladivostock a Moscovo, e o destino do mundo. Dele, sim, se pode dizer que foi maior do que a vida.

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