O cancro da democracia

 JOÃO CÉSAR DAS NEVES      25.11.2017    DN


A doença mortal da nossa democracia volta a manifestar-se. É a maleita que arruinou liberalismo e Primeira República, gerou as várias ditaduras que suportámos, causou a dívida que hoje nos oprime e a recessão de que ainda recuperamos. É ela que gerará o próximo colapso que, após as manifestações recentes, está cada vez mais próximo. O vírus é o corporativismo exacerbado, com grupos poderosos esquartejando o país a seu favor, exigindo condições acima das possibilidades, destruindo o desenvolvimento, justiça social e equilíbrio nacional.
Os sectores que vivem à custa dos impostos são muitos e variados: construtoras, banca, comunicações, transportes, energia e tantos outros pseudoprivados, além do aparelho público, câmaras, médicos, professores, funcionários, pensionistas, e inúmeros outros. Foram estes os grupos que mais beneficiaram com o longo endividamento de 1992 a 2008 e, quando bateu a crise, deviam ser os mais atingidos. Mas não foram. Quem vivia à sombra do poder público manteve-se incólume até 2011, conservando o posto e as receitas, enquanto empresas faliam, pobres perdiam emprego e a população reduzia o salário. Só quando a troika exigiu é que também participaram no sacrifício geral mas, mesmo então, ainda com a protecção do Tribunal Constitucional, que considerou os cortes injustos. Deste modo, elas foram as classes menos atingida pela recessão, mas, protestando como se fossem as maiores vítimas, agora exigem reposição das condições que arruinaram o país há sete anos.
Isto parece obsceno, mas a única surpresa é a recaída no vício corporativo ter demorado tanto tempo. Os primeiros quatro anos após 2010 foram de convalescença, que, compreensivelmente após surto tão virulento, teve de ser longa. O tratamento directo da troika vigorou até meados de 2014, mesmo para lá retoma do crescimento em 2013, e o governo de então ainda manteve disciplina mais ano e meio, fora do protectorado do programa de estabilização. Assim, as ânsias corporativas, que costumam estar firmemente radicadas em todo o espectro político, tiveram desta vez de esperar pela esquerda, que assumiu o poder apenas em finais de 2015.
Só que, ao contrário do que declarara, o novo governo não inverteu a austeridade, apostando fortemente no cumprimento das obrigações comunitárias e na redução do défice orçamental, sobretudo à custa das despesas funcionais, o que foi tornando inoperantes os serviços. O apoio da extrema-esquerda, a zona mais corporativa do espectro ideológico, conseguiu silenciar as reivindicações dos principais grupos de interesse, que se tiveram de contentar com alguns aumentos simbólicos, pois exigir mais ameaçaria a primeira presença na esfera do poder dos partidos revolucionários.
Tudo mudou com a enorme sova que o PCP levou nas eleições autárquicas de Outubro, pondo em dúvida a razoabilidade política do seu apoio ao governo PS. Nas novas condições, foi finalmente dada luz verde aos anseios de classe. O epicentro da infecção está, como seria de esperar, nos professores, pelas características próprias do sector. Trata-se de uma profissão altamente qualificada e erudita, ao contrário de operários e agricultores, que trabalha concentrada num local, ao contrário de reformados e gestores, com frequentes reuniões de programação, ao contrário de médicos e militares, e bastante tempo livre, ao contrário de polícias e funcionários. Tudo isto cria excelentes circunstâncias para planear reivindicações e campanhas de pressão.
Por essas razões já tinham sido os professores uma das classes que mais beneficiaram com o longo período de endividamento. As suas "justas reivindicações" foram criando carreiras onde as benesses elevadas iam a par de produtividade decrescente, pois quanto mais qualificado é o docente menos aulas dá. Agora exigem "respeito", que significa recuperar todos os cortes anteriores, numa vergonhosa chantagem sobre os impostos dos pobres.
Esta simples descrição chega para notar a mesquinhez da atitude. Mas, apesar da flagrante injustiça, é preciso compreender que, mais do que imoralidade dos participantes, é a própria lógica democrática que gera a infâmia. Os professores, mesmo se estão a abrir a caixa de Pandora das reivindicações sociais, mais uma vez arruinando o país, estão de boa-fé, e agem de forma compreensível. O motivo do paradoxo vem da diferença flagrante, que os próprios princípios democráticos potenciam, entre interesse privado e interesse nacional.
O regime existe para servir o povo, e a classe docente é indiscutivelmente uma das suas partes mais eminentes. Por outro lado, é inegável que os salários e condições de trabalho do sector deixam muito a desejar, como se vê comparando com os homólogos europeus. Assim as exigências dos professores são compreensíveis, mesmo se impossíveis de suportar por um país ainda muito endividado.
Ninguém sabe como acabará o confronto. Sabemos só que ressurgiu a doença mortal da democracia.

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