O sarampo social

INÊS TEOTÓNIO PEREIRA    22.04.17

Se há uma coisa que os pais em geral gostam de fazer é criticar outros pais. As mães em particular destacam-se neste desporto. O mal dos outros acrescenta ao nosso bem: somos melhores conforme os outros são piores. É assim que se mede a eficiência paternal e em todas as áreas: nas regras de boa educação, no desempenho escolar dos filhos, na maior ou menor autonomia que concedemos aos nossos filhos, nos cuidados que lhes prestamos, etc. Aos olhos dos outros, quando os filhos tropeçam quer dizer que os pais espalharam-se. Há sempre uma falha a observar, que é transformada em conclusão e que acaba com um "coitados dos miúdos". Um lapidar exercício de piedade que soa a silvo de cobra. Isto até pode ser caricato, muitas vezes até é construtivo, na maioria incomoda. Outras vezes é apenas crueldade.

A morte da rapariga com sarampo foi o exemplo extremo deste exercício. As pedras lançadas contra a mãe foram com tal energia, empenho e raiva que impressionaram. Uma mãe perde uma filha e nem sequer há espaço, tempo, respeito pelo luto: há julgamento, condenação e uma execução em apenas duas horas. Saísse a senhora à rua no dia em que a filha morreu e não seria abraçada mas sim apupada, ninguém lhe daria o ombro mas sim um insulto. A arrogância com que a sociedade fez o luto raivoso da filha substituindo-se à mãe, como se a filha não fosse dela, como se a dor não fosse só dela, foi bárbaro. Depois, bem depois é o que se sabe: afinal a culpa não foi dela, afinal ela nem sequer é contra a vacina do sarampo - a criança é que tinha um sistema imunitário frágil - e afinal os pais não são uns negligentes radicais mas sim pessoas sensíveis que perante a violência da reação que a filha fez à vacina não quiseram repetir. Afinal, bom, afinal podemos todos chorar a morte da rapariga, abraçar a mãe e abanar a cabeça. Afinal ela merece as nossas lágrimas porque podia ter acontecido a qualquer um dos nossos filhos e porque as nossas lágrimas têm de ser merecidas. Podemos assim recolher as nossas pedras e voltarmos às nossas vidinhas em busca de outra vítima que nos expie os pecados, de outro pai ou de outra mãe que erre que o seu erro tenha consequências.
O resultado mais significativo deste drama nem é sobre a questão de quem defende não dar vacinas aos filhos (que pode servir para mostrar o perigo e abrir os olhos de quem o defende), mais importante do que isso é a demonstração de como somos todos tão rápidos e eficazes a disparar. E não é a disparar sobre o ISIS ou contra o violador de Telheiras, mas sim sobre uma mãe que perdeu uma filha. Há alguma coisa mais impiedosa do que isto?

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