Uma carta sobre a eutanásia

Rui Albuquerque

Prezada Lara,
Permita-me que a trate informalmente. Afinal de contas, embora não nos conheçamos pessoalmente, partilhamos ocasionalmente um espaço comum – este do Mises – Portugal – e, por conseguinte, peço-lhe que me trate do mesmo modo, se entender responder ao que lhe escrevo aqui.
Começo por dizer-lhe que sou de «direita» porque nunca fui de esquerda, que sou «burguês» porque sou «liberal» e defensor das virtudes do livre-comércio, que sou contra a consagração legal da eutanásia porque não a vejo como um direito fundamental, e – pasme lá, agora – que não sou beato, pela simples razão de que não tenho fé em Deus. Com pena minha, devo dizer-lhe.
A razão pela qual lhe escrevo é que o assunto de que trata o seu artigo – a consagração legal da eutanásia – é suficientemente sério para que o que escreveu fique sem contraditório. Mais ainda porque, se me permite, fê-lo afirmando que ser liberal obriga ao reconhecimento desse «direito», o que não pode também ficar sem réplica.
Note então, e em primeiro lugar, que eu não lhe disse que sou favorável à criminalização do suicídio tentado. Não sou. Como, de resto, quase sempre não sou favorável a que a lei do estado interfira em escolhas individuais. Mas a eutanásia e o suicídio tentado são coisas muito diferentes: a primeira é integralmente realizada por uma pessoa que fica viva, a pedido da que irá morrer; a segunda é um acto livre da própria vítima. Ou seja: a tentativa de suicídio é uma acção do próprio autor; enquanto que a eutanásia será sempre uma acção de um terceiro sobre uma pessoa que se encontra incapaz no momento em que ele tem lugar.
Por conseguinte, não vejo que o estado deva punir quem atentou contra a sua própria vida e falhou. Já bastará, não tenho dúvidas disso, o sofrimento em que vive um suicida frustrado para ainda lhe aplicar uma sanção penal, seja ela qual for. É evidente que uma pessoa pôr fim à sua vida não é exactamente um valor a cultivar numa comunidade sã, mas, lá está, é como você diz: isso não afecta directamente a liberdade, a propriedade, nem a vida de ninguém a não ser a do próprio. Deixem-no, pois então, em paz e, se possível, arranjem maneira de o convencer, com bons «argumentos», a ficar por cá mais algum tempo.
E nem o suicídio assistido é o mesmo que a eutanásia, porque esta pressupõe que o próprio seja incapaz de declarar a sua vontade de morrer no momento em que alguém executa o acto que o levará à morte. Já o suicídio assistido é pedido pela própria vítima em estado de plena consciência e realizado em momento próximo do pedido, o que significa que a vítima está ciente irá acontecer no quase exacto momento em que vai acontecer. Ainda assim, um suicídio assistido é muito diferente do suicídio, porque os actos finais que determinam a morte não são da autoria do próprio. Tem que haver aqui alguma responsabilidade de quem dá a injecção letal, mesmo que essa responsabilidade seja reduzida, ou até justificada penalmente. Tenho dúvidas, mas admito-o.
Nada disto acontece com a eutanásia, enquanto conceito legal. Aqui, a pessoa que vai morrer está já num estado de total incapacidade, que determina a impossibilidade de ter uma vida consciente, estando impossibilitada de declarar a sua vontade no momento final. Se estivesse, concordará comigo, seria de suicídio assistido e não de eutanásia que estaríamos a falar. A eutanásia é um contrato sob condição: se se vierem a verificar estes pressupostos, cumpra-se o contratado. O suicídio assistido é um contrato de execução imediata. O suicídio é um acto meramente individual.
Deste modo, levanta-se aqui um primeiro problema muito sério: como qualificar o executor presente de uma vontade anterior da vítima da execução, sem que esta a possa confirmar no momento que determinará o seu fim? Será o quê?
E quem desempenharia essa nova «profissão», eis outro problema? Os médicos? Não vejo que a maioria deles esteja disponível para isso, e que a minoria que se disponha a fazê-lo possa violar o Juramento de Hipócrates sem consequências legais e profissionais. Enfermeiros? Pessoas que tirem um curso superior para aprenderem a matar alguém sem dor? Porque, convirá, este «direito» à eutanásia, se for consagrado pelo estado como um direito (e só o estado consagra direitos por via legal, como bem sabe), terá que ter quem o execute, sob pena de não ser direito nenhum. Vamos obrigar médicos e enfermeiros do Serviço Nacional de Saúde, por exemplo, a executarem pessoas, para que elas tenham acesso à realização do «direito à eutanásia»? Com certeza que não. Fazer contratos com companhias seguradoras ou agências especializadas? Dificilmente. Mas, para todos os efeitos, tratando-se de um direito, teríamos de criar uma espécie de bolsa nacional de carrascos, de modo a que não ficasse sem realização.
Mas outros problemas muito mais sérios do que estes se levantam aqui. Aliás, quando as ditas «causas fracturantes» são implementadas na prática, são sempre mais os problemas imprevistos (ou previstos e que todos asseguravam que nunca iriam acontecer…) que se sucedem, do que as facilidades que a lei descreve ou pressupõe.
Por exemplo: sabia a Lara que a cobertura legal da eutanásia, nos países onde é consentida, é utilizada, por muitos médicos, enfermeiros e em muitos hospitais, para, não hesito na palavra, assassinar doentes em estado terminal ou com idade muito avançada, com e sem o seu anterior consentimento? Veja a lógica, muito própria, aliás, do estado social: «os recursos são escassos, estes já não se safam, as camas e os médicos são necessários para outros que se podem safar, pelo que a solução humanitária será cuidar dos vivos e enterrar os (quase) mortos». Não é verdade que na Grécia antiga, a bem da comunidade, se atiravam das escarpas os idosos e os considerados imprestáveis? Então…
E tem aqui ainda outro problema: como o direito à propriedade de si mesmo é um dogma sem quaisquer restrições, gravado a ouro nas tábuas da lei libertária, você sabe que, respeitando esse sacrossanto princípio, a Bélgica aprovou a legalização da eutanásia para menores com graves deformações físicas e/ou mentais, ou doenças incuráveis, e que sejam capazes de determinar a sua vontade? O que tem a dizer a isto? Sente-se confortável com a eutanásia infantil? Pensa que a lei deve privilegiar uma sociedade apenas de pessoas saudáveis e onde haja somente pessoas fisicamente exemplares? Ainda que não pense assim, não negará, provavelmente, o direito a pôr fim à própria vida a quem padece de um sofrimento físico atroz e inultrapassável, ainda que seja uma criança. Bom, você poderá dizer-me que ninguém obriga uma criança deficiente a optar pela morte, pelo que a consagração legal da eutanásia, para estes casos, não a obriga. Mas eu poderia responder-lhe perguntando-lhe quantos de nós, em momentos mais apatetados da nossa juventude, não tivemos, um dia, a ideia romântica do suicídio? A tentação imbecil de deixarmos uma humanidade que não nos estima, aprecia ou trata como achamos que nos é devido, e que ficará desolada por nos ter visto partir zangados com ela? Agora, falando a sério, muito a sério, pergunto-lhe: quantas vezes uma criança ou um jovem com uma séria deficiência, ou uma doença grave, não terá essa tentação, quase natural na sua infeliz condição? E a resposta da lei (do direito, prefiro) e da comunidade deverá ser facultar-lhe os instrumentos para que ela possa materializar o seu desespero? Também não me parece que possa ser por aí.
Por fim, o que me parece mais importante: a quem pertence a decisão final efectiva de eutanasiar uma pessoa: àquele que determinou a sua vontade no passado e que agora a não pode ratificar e vai morrer ou a quem vai executar o acto que o levará à morte? A este último, sem dúvida. Porque, repare, a decisão de matar alguém é sempre de quem executa o acto, por mais que esteja esse acto justificado por pedido anterior da vítima: mesmo que eu me tivesse comprometido a fazê-lo antes não sou obrigado a fazê-lo agora, e só o farei se essa for a minha vontade, a que nada nem ninguém me podem obrigar (lembre-se do que Rothbard escreveu sobre a validade das promessas contratuais…).
A este propósito, e para terminar, contar-lhe-ei uma história pessoal. É uma história de família, mas não me perturba partilhá-la, porque terá o mérito eventual de nos fazer compreender algumas coisas.
A minha Mãe, de quem fui filho único, faleceu, ao fim de muitos anos de padecer da doença de Alzheimer. Os últimos meses foram horríveis para todos, mas, desde logo, foram-no principalmente para ela. Não sei se ela teria pedido para a eutanasiarem, se tivesse a consciência do que iria passar. Mas há uma coisa que lhe garanto: eu não o faria, nem permitiria que alguém o fizesse, mesmo que estivesse por ela mandatado para o fazer, quando estava ainda no pleno uso das suas faculdades. Menos ainda autorizaria que o aparelho repressivo do estado, a quem compete, in extremis, a garantia judicial e policial dos direitos individuais, como você pretende que garanta ao querer que uma lei consagre este «direito», fizesse cumprir a «vontade» da minha Mãe. Nem eu o permitiria, nem os meus filhos e a minha mulher, que vivemos, cada dia que passou, com a minha Mãe, e que a amámos até ao seu último instante. Como resolveria você este problema, Lara? Mandando a polícia, sob ordem do tribunal, buscar a minha Mãe a casa, para a eutanasiar, para garantir que o seu direito fosse realizado? Ou consentiria que a minha vontade se sobrepusesse à vontade anterior dela, violando o sacrossanto direito absoluto de cada um dispor de si mesmo?
O último instante é, cara Lara, o grande enigma da vida. Não me parece que ninguém o deve poder, legitima e licitamente, fazer acontecer sobre a vida de outros, mesmo que uma lei do estado lhe confira esse direito em conformidade com uma vontade anteriormente expressa pela vítima. Mas esta é somente a minha opinião.
Aceite os meus cumprimentos cordiais,
Rui Albuquerque

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