As guerras do euro ainda mal começaram

Público 2011-12-02 José Manuel Fernandes

Daqui por uma semana o euro estará salvo. Pelo menos será isso que titularão os jornais e proclamarão os comentadores depois de conhecidas as resoluções da próxima cimeira europeia. Tem sido assim sempre que os líderes europeus se reúnem e nada indica que algo de essencial esteja para mudar. É pois altamente provável que, passados dois ou três dias, o euro esteja novamente em risco e a Europa à beira do abismo.

Este roteiro, já tantas vezes repetido, dava uma comédia se não fosse uma tragédia. E é uma tragédia em boa parte porque há muita falta de claridade sobre o que está em causa. E muito nevoeiro nos termos da discussão. Vejamos alguns exemplos.

"O problema da Europa é a falta de lideranças. Se ao menos ainda cá tivéssemos o Delors, o Mitterrand, o Kohl..."

Podemos discutir a falta de bons líderes europeus nos dias que passam, mas não podemos nem devemos tomar como modelos os líderes do passado que nos meteram no actual imbróglio. Eu sei que isto que estou a dizer é uma grande heresia, mas é bom que fique claro que chegámos onde chegámos porque criámos uma moeda única sem lhe darmos condições económicas e políticas para triunfar, o que aconteceu por responsabilidade desses líderes bem-amados. Nigel Lawson, que na época do lançamento do projecto do euro era ministro das Finanças de Margaret Thatcher, recordou recentemente num artigo da Spectator que logo nessa altura defendeu aquilo que hoje todos dizem: não seria possível construir uma união monetária sem um governo económico conjunto, e isso em democracia exigiria sempre uma união política. Lawson, naturalmente, estava contra uma união política (que também considerava impraticável) e, por isso, opôs-se ao projecto do euro. Mesmo assim esses "queridos líderes" do passado, Delors, Mitterrand e Kohl, decidiram avançar com a construção de um castelo sem alicerces. Foi isso mesmo que ainda há poucas semanas defendeu também Joschka Fischer, alguém que está nos antípodas políticos de Lawson. Segundo o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, quando o euro foi criado "a ideia de um governo central tinha poucos apoiantes". Foi por isso que "essa fase da construção da união monetária foi adiada, deixando este impressionante edifício sem os sólidos alicerces necessários à manutenção da estabilidade em tempos de crise". Ou seja, tanto à direita como à esquerda se admite hoje que esses "grandes líderes" não fizeram, em tempos mais prósperos e mais fáceis, o que se pede aos líderes de hoje para serem eles a fazer, isto é, a união política. Pelo menos é o que pessoas como Fischer pedem abertamente. Outros, como Lawson, continuam a achar que tal não pode ser feito sem sacrifício dos princípios da democracia. É também o que eu penso, e só estranho que tantos desvalorizem este importante detalhe.

"A Europa submeteu-se à dupla Merkel-Sarkozy. Vivemos na ditadura "Merkozy""

A Europa sempre dependeu do dinamismo do chamado eixo franco-alemão. Para o melhor ou para o pior. Foi assim quando nasceu, foi assim aquando dos principais "saltos em frente". A boa saúde europeia sempre foi associada ao bom funcionamento dessa dupla, o que se compreende: a Alemanha é o maior e mais poderoso país da UE, a França vem logo a seguir, isto sem esquecer que os últimos dois séculos foram marcados pelas rivalidades, e guerras, entre estes dois países em luta pela hegemonia continental. E é bom lembrar que o euro foi imposto por Mitterrand a Kohl como moeda de troca pela unificação alemã (nessa altura também eram eles que mandavam na Europa mas ninguém se queixava da ditadura "Mitterrohl"...). Mas o pior neste discurso é que ele ilude o essencial, e o essencial é o que o politólogo norte-americano Walter Russel Mead definiu como a "guerra cultural do euro". Na verdade boa parte das dificuldades actuais derivam do confronto entre duas culturas económicas diferentes. De um lado está a França e os países do "Clube Med", que preferem uma economia com alguma inflação e com desvalorização da moeda, semelhante às economias que tinham antes do euro. Do outro lado está a Alemanha, que prefere uma moeda forte e uma inflação baixa, com juros também baixos. Na altura da criação do euro os franceses só conseguiram convencer os alemães a abandonarem o seu querido marco prometendo que a nova moeda obedeceria às regras alemãs e não às francesas. Isto significou que, como referiu recentemente o anterior ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, quando nós próprios aderimos ao euro o que fizemos foi aderir ao marco com outro nome. Tudo isso ficou estabelecido nos tratados, pelo que uma boa parte da discussão que vai por essa Europa fora é em torno da revisão ou não desses mesmos tratados. Mais: há mesmo quem (como Viriato Soromenho Marques) defenda abertamente que se devem violar os tratados para salvar o euro. Ficamos porém sem saber o que poríamos depois no lugar desses tratados, sendo que se hoje eles ainda colocam limites à acção de Merkel ou Sarkozy, sem eles a discricionariedade da "ditadura Merkozy" seria total.

"Temos é de caminhar para a união política. E temos de colocar o Banco Central Europeu a imprimir moeda"

Uma das características do debate europeu em Portugal é que ele tende sempre a esquecer que não existem almoços grátis. Todas as soluções alternativas à actual são apresentadas como milagrosas e sem defeitos. Mas isso nunca sucede. Basta ver o que se está a preparar para a próxima cimeira europeia. Face à pressão para transformar a União numa "união de transferências" - o que é contrário à letra dos tratados mas decorrerá sempre de soluções tipo eurobonds -, a Alemanha propõe a revisão do Tratado de Lisboa com o reforço das competências europeias no que toca à governação económica. Sem resolver o essencial - o problema da falta de legitimidade democrática das instituições comunitárias -, a proposta sugere a transferência parcial para Bruxelas de uma das principais competências dos parlamentos nacionais, a da elaboração dos orçamentos. Se for aprovada, isso significará que continuaremos a não eleger a Comissão Europeia, tal como hoje não elegemos a troika, mas passaríamos a estar submetidos a ela como hoje estamos à troika, só que sem limitação temporal. Há sempre um reverso da medalha, e a perda irremediável de soberania será sempre a contrapartida de mais federalismo. Por outro lado, não deixa de ser curioso ver como a hipótese de colocar o BCE a imprimir notas não leva ninguém a meditar um segundo que seja nas consequências inflacionistas dessa medida. Será que pensam, por exemplo, que depois seria possível manter os juros tão baixos? Será que se esqueceram que a última vez que Portugal desvalorizou de forma abrupta a sua moeda (aquando do acordo com o FMI de 1983, era Mário Soares primeiro-ministro), a inflação disparou e, em pouco mais de um ano, os portugueses perderam em média mais 10 por cento do seu poder de compra, um tratamento bem mais violento do que o agora decidido pelo Governo? Podemos preferir mais federalismo e mais inflação, até há bons argumentos a favor de cada um desses caminhos - mas não se omita a conta que terá sempre de ser paga.

A situação europeia parece-me demasiado grave e complexa para podermos evitar mais transferências de soberania e alguma forma de uma "união de transferências". Sinto, no entanto, que isso será feito sem mandato democrático, por pura aflição. De resto na Europa, como já notou o filósofo alemão Jürgen Habermas, há muito que os tecnocratas fizeram um golpe de Estado silencioso e que o poder escapou das mãos do povo. Por isso é bom tentar olhar para o "dia seguinte" às medidas de emergência de hoje.

Uma hipótese é olhar para a ficção idealizada há duas semanas pelo historiador Niall Ferguson, que escreveu no Wall Street Journal um ensaio sobre como seria a Europa em 2021. Teríamos então uma Europa do euro hegemonizada pela Alemanha, uma espécie de novo Sacro Império Romano-Germânico onde os povos do Sul teriam o mesmo estatuto economicamente secundário que hoje têm os habitantes da antiga Alemanha do Leste. E teríamos, fora deste espaço, a Grã-Bretanha, a Irlanda e os países nórdicos, todos eles incapazes de aceitarem a submissão a Berlim. É uma hipótese verosímil, porque é exactamente ao afastamento das periferias que poderá conduzir mais integração europeia, um caminho que Londres, Copenhaga e Estocolmo nunca aceitarão (como já não aceitaram o euro).

Se assim for, de que lado ficará Portugal? Com os povos atlânticos, seus aliados históricos? Ou na periferia do bloco continental, um destino que sempre procurou evitar? Talvez este debate se coloque mais depressa do que hoje somos capazes de imaginar. Jornalista

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