Uma novidade

João César das Neves
DN, 20020204


Portugal está em crise. O que não é novidade. A economia anda aflita e a política desorientada, repetindo situações do passado, sem nada de novo na nossa acidentada história democrática. Mudam os actores e as circunstâncias, mas, no fundo, o enredo mantém-se. Eça, Ramalho e até Fernão Lopes e Diogo do Couto teriam uma sensação familiar, se hoje visitassem Portugal.Mas, no meio da repetição cinzenta, deve ser louvado o aparecimento de um elemento original, no nosso quadro político. Pode não ser muito bom nem genuinamente natural, mas, pelo menos na aparência, há uma novidade, nesta conjuntura.A novidade não está na crise económica. O problema que nos assola é financeiro, como tantos que tivemos, no passado. Tal como em 1977 e em 1983, mas também em 1560, 1605, 1837, 1847, 1869, 1891 e em tantos outros, andámos, nos últimos anos, a viver acima das nossas posses. Agora, vamos ter de passar uns tempos a apertar o cinto e pagar as dívidas. A origem do problema veio do descontrolo do Orçamento e da sofreguidão dos organismos públicos, como até a UE notou. Não há nada de novo sob o Sol! Nem o facto de estarmos no euro e em perfeita abertura na Europa traz novidades significativas. Uma dívida é sempre uma dívida e paga-se sempre de forma semelhante.A principal diferença, face às crises anteriores, é que desta vez o endividamento foi acumulado não em época de turbulência e dificuldade, mas em anos de crescimento. Isso revela uma irresponsabilidade acrescida, na política dos últimos anos, e pode significar maiores custos, nos próximos. Mas não chega, para mudar a natureza do problema.A novidade não está, também, na crise política. As eleições autárquicas foram desfavoráveis ao partido do Governo, como tem sucedido sempre, nas últimas décadas. Foi insólita a demissão do senhor primeiro-ministro, interpretando resultados que não o justificavam, como ele próprio afirmou nas semanas anteriores. Revela fragilidade política e anímica e também um interesse em proteger a imagem pessoal para combates futuros, acima das responsabilidades do momento. Não é propriamente uma novidade, na vida nacional.Assim, no meio da crise económico-política, que fez as delícias dos intriguistas profissionais, como sempre, tudo se desenrolou como de costume. O País está desamparado e o povo em expectativa. Os partidos mostram desorientação e avidez e afirmam convicções, sem de facto saberem como vão sair do buraco. O que é tudo menos caso único, na nossa herança secular. Em tudo isto, ressoam as velhas diatribes de Rafael Bordalo Pinheiro, o "regabofe" da Primeira República e até as maquinações de Fernão Peres de Trava e do conde de Andeiro. Não há nada de novo, na nova geração de crises nacionais.Mas há um pequeno aspecto disfarçado, que é original e muito influente. Pela primeira vez na sua longa história, o Partido Socialista mostra-se disposto a fazer uma aliança de governo à sua esquerda, com o Partido Comunista Português. Isso é, de facto, um elemento que traz influências inesperadas, no quadro institucional da nossa democracia moderna.Todos nos lembramos como, logo em 1975, o PCP declarou, triunfante, que havia uma "maioria de esquerda", na Constituinte. Essa afirmação foi repetida mais cinco vezes (1976, 1983, 1985, 1995 e 1999), ao longo das nove eleições para a Assembleia da República. Em todos estes casos, essa constatação significava um convite implícito ao PS para uma coligação de governo com os comunistas.Mas todos nos lembramos, também, como o dr. Soares e o eng.º Guterres recusaram sempre essa possibilidade, preferindo governar sozinhos em minoria (1976, 1995 e 1999), fazer alianças com o CDS (1978) ou com o PSD (1983), mas nunca juntarem-se a um partido que consideravam estalinista empedernido. A afirmação central era que o socialismo democrático, sendo indiscutivelmente de esquerda, estava mais longe da "democracia popular" marxista do que dos partidos democráticos ocidentais. Deste modo, a expressão "maioria de esquerda" foi sempre recebida com um sorriso pelas cúpulas do PS.Hoje, pela primeira vez após Abril, a liderança socialista abre a possibilidade de uma aliança governativa com o PCP, após as eleições de 2002. Isso, não mudando a natureza da crise, contribui com um detalhe que pode ser muito significativo, nos próximos tempos. Mas o que se alterou para o justificar? Não foi certamente o PCP, o partido que mais manteve a sua ideologia e atitude, numa louvável coerência e estabilidade desde a sua fundação. Também o PS não modificou a sua inserção, prática e doutrina. As mudanças tácticas não impedem que o partido de hoje seja o mesmo de sempre. Qual é, pois, a causa da mudança?O motivo é, apenas, a orfandade em que a demissão de Guterres deixou o PS. O partido sabe que só pode continuar a governar com o apoio do PCP. Assim, a única motivação visível para esta novidade é a vontade de permanecer no poder. O que não se pode considerar, de facto, uma grande novidade.naohaalmocosgratis@vizzavi.pt

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