Ao Padre João Seabra

 JOSÉ MARIA MATIAS   25-06-2022 SOL


Sempre gostei de uma frase de Adelino Amaro da Costa: «Ser autêntico, viver de acordo com o que se pensa até às últimas consequências é difícil, mas tem um grande prémio.» Toda a frase estava virada para a irreverência de uma juventude que se quer genuína e com a sua rebeldia própria. Contudo, pelos olhos da fé, esta é uma frase que ganha uma dimensão muito maior do que parece à primeira vista. Ser autêntico, viver de acordo com a verdade e levá-la até às últimas consequências é difícil, mas tem um grande prémio. Levá-la até às últimas consequências independentemente da fase ou da circunstância. E que prémio é esse? A eternidade.

Essa autenticidade é algo que só associamos aos maiores, a gente grande, de uma fibra que já não se faz. Recentemente partiu uma dessas pessoas: o Padre João Seabra. Parece-me existir um misto de emoções na gestão deste acontecimento. Porque no fundo, nunca se espera a perda de alguém que já parecia eterno neste plano.

O Padre João compreendeu o tempo que viveu, uma Igreja que enfrentava uma mudança de época e um país que, depois do 25 de Abril, vivia uma época de mudanças. Mas não era sobre isso que me queria debruçar.

Como já foi dito, vão ser precisos meses para compreender melhor a obra que deixou. Um dos privilégios da minha vida foi o de contar com a amizade do Padre João e de poder afirmar que somos amigos. Conheci o movimento Comunhão e Libertação com 16 anos, foi nessa época que ia frequentemente à Igreja da Encarnação. Já conhecia o Padre João, mas pouco ou nada tinha falado com ele. No entanto, isso mudaria no fim de uma missa em meados de 2013, com a Igreja da Encarnação cheia. Impressionou-me o número de pessoas que no fim da celebração ocupavam as escadarias da Igreja, com o Padre João no meio deles. O tempo passava e a multidão não desarmava. Vi a admiração e o entusiasmo daquela gente. Já tinham passados largos minutos e por alguma razão que não me recordo, eu tinha de esperar pelo seu dispersar; lembro-me de estar à margem com alguns amigos e ia pensando para dentro, quem será este sacerdote? Quem seria aquela pessoa que fazia com que tantos quisessem estar à sua volta no fim de tarde de uma sexta-feira? Não esperaria muito mais por resposta. Enquanto estava no meio destes pensamentos e sem me aperceber, ainda no meio da multidão, o Padre João dirigiu-se para o local onde me encontrava, veio ter comigo e perguntou-me sem rodeios, no meio de todos: «Quem és tu, que foste a única pessoa que está aqui que não me veio cumprimentar?». Aquilo petrificou-me, fiquei sem resposta como não me lembro de alguma vez ter ficado. Que intrusão, mas ao mesmo tempo que cuidado e quanta delicadeza. Provavelmente seria mesmo a única pessoa que não o teria cumprimentado ainda.  Apresentaram-me por mim e o Padre João retorquiu logo de seguida: «Tens de vir ter comigo para falarmos.»

Despediu-se e voltou para perto dos amigos. Quem o conhecia sabia que aquele comportamento era normal no Padre João, mas para mim foi uma total novidade, um choque até. Não me atrevi a desobedecer, inspirava uma autoridade que não era comum. Dessa forma arrebatadora nasceu uma amizade. Pouco depois parti para fora do país para estudar e ele quis saber tudo. Chegou a ser a primeira pessoa que me visitou no estrangeiro, também de forma inesperada, quis certificar-se que eu estava bem. Acompanhou-me sempre! Como a minha, sei que marcou a vida de centenas de pessoas. Num mundo em rede, houve um homem que pescava à linha. Numa sociedade de órfãos, houve um homem que marcou por uma paternidade sem medida.

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