Je suis ninguém

Helena Matos
Observador 3/7/2016

Um comerciante português, para mais emigrado na Venezuela (ainda se fosse na Inglaterra pós-brexit) não tem perfil para vítima. Pode ser assassinado e decapitado. Ninguém se indigna ou comove.
Decapitado. Com as mãos cortadas. Antes estivera sequestrado. Mas não, ninguém se sentiu Carlos Gouveia, era assim que se chamava este português de 42 anos, assassinado e mutilado pelos seus sequestradores. Ninguém escreveu no facebook “Je suis Carlos Gouveia”. Nem sequer o facto de as autoridades da Venezuela, país onde Carlos Gouveia estava emigrado, terem enterrado secretamente o seu cadáver suscitou qualquer indignação ou solidariedade com a sua família. Não houve velas na porta da embaixada da Venezuela, não houve petições, não houve praticamente notícias.
E contudo, nos dias em que acontecia o calvário de Carlos Gouveia, não faltaram indignações e comoções em Portugal. Com gatinhos abandonados. Com o facto de existirem matadouros, touradas e pais que mostram os filhos no Facebook. Ou que não mostram os filhos. Com o machismo, o micromachismo, o problema das casas de banho para os transgender e as máquinas de venda automática de comida. Sem esquecer a urgência em regulamentar os direitos dos robots e a denúncia das pressões para que as actrizes usem sapatos de salto alto nas galas e festivais de cinema. Curiosamente as actrizes que agora atiram com os sapatinhos ao ar como forma de protesto são as mesmas que durante anos apareceram em todos os eventos (ou simplesmente na rua delas) em cima de saltos vertiginosos. Mais contraditório ainda, ao mesmo tempo que decorria a cruzada contra os sapatos de salto alto, quando usados por mulheres, também se batiam palmas à corrida em saltos altos que tem lugar na marcha do Orgulho Gay de Madrid. Porque nesse caso os saltos altos, a saber nos pés dos gays, são uma forma de luta contra a homofobia. Fácil de entender, não é?
A isto juntou-se a indignação contra os velhos porque estes terão votado a favor do Brexit em Inglaterra e contra o Podemos em Espanha. (Mais uma votação assim e os velhos ainda acabam a ver limitado o direito de voto!) E até um inócuo cartaz da Cruz Vermelha norte-americana a apelar a um comportamento cívico das crianças nas piscinas se tornou num caso de racismo, com o cartaz a ser retirado, seguido dos inevitáveis pedidos de desculpa porque os donos da indignação logo acharam que as crianças negras estavam desfavoravelmente representadas face às crianças brancas. Misteriosamente ninguém se indignou por não existirem asiáticos no cartaz ou se interrogou sobre a confusão entre hispânicos e negros. Afinal os outros racismos oficialmente não existem ou abordam-se na linha das “tradições ancestrais” e das “questões culturais”.
Claro que também houve indignações com mortes e prepotências. Mas devidamente seleccionadas e enquadradas, claro. Veja-se o caso do fundamentalismo islâmico. É mais ou menos inquestionável, desde que Obama chegou à Casa Branca, que os fundamentalistas matam porque querem matar. Até aí matavam porque queriam protestar contra a miséria, o poderio dos EUA em geral e Bush em particular.
Hoje assume-se que matam – o que já é um avanço nas abordagens ao assunto – mas a sua violência é piedosamente enquadrada no fanatismo a que a religião leva os homens. Não o Islão mas sim as religiões no seu todo, pese a dificuldade de, por exemplo, encontrarmos, nestes tempos, budistas ou católicos que matem em nome da sua religião e ainda por cima sejam venerados por isso pelos demais praticantes e líderes da sua fé. Na prática as mortes causadas pelos fundamentalistas islâmicos só indignam quando os seus ataques, como aconteceu em Orlando, podem ser apresentados como o resultado dos problemas do nosso mundo: estávamos diante de um ataque homofóbico e não de um ataque terrorista. Agora nem uma coisa nem outra porque quanto mais se sabe sobre o perfil do atacante, Omar Mateen, menos os factos batem certo com o quadro possível das indignações do “je suis”.
Poderia continuar a acumular casos mas não creio que seja necessário. É óbvio que um comerciante português, para mais emigrado na Venezuela (ainda se fosse na Inglaterra pós-brexit) não tem perfil para vítima. Pode ser assassinado, decapitado, amputado, o seu cadáver enterrado às escondidas da sua família… Não interessa. O seu destino tal como o de milhares de portugueses que ali procuram sobreviver só interessará no dia em que aqueles que têm o monopólio do exercício da indignação integrem a Venezuela nos seus ódios. Afinal foi isso mesmos que aconteceu com a denúncia da forma autocrática que caracteriza o exercício do poder pelo MPLA, em Angola. Durante anos todos aqueles que relatavam o que acontecia em Angola, alegadamente libertada, foram rotulados como reaccionários, ressentidos e colonialistas. Agora andam num “tira e põe” de t-shirts por Luaty Beirão! Daqui por alguns anos descobrirão a Venezuela e então ninguém os ultrapassará na sua fúria e nas suas dores pela Venezuela. Darão entrevistas por causa da Venezuela. Acusarão os demais de terem interesses na Venezuela… Até lá nem uma palavra sobre a Venezuela.
Tudo isto é uma fantochada mas é a nossa fantochada. Vivemos em perfeito desafasamento da realidade: os factos não contam. Conta sim a percepção que nos é dada deles e que acriticamente não só aceitamos como vivemos com assinalável fatalismo. Mais, aceitamos não só viver a toque de caixa (e de notícias) dos profissionais da indignação como aceitamos com resignação o facto de não se conseguir impor mais nada na agenda.
Em Portugal, a indignação está há anos nas mãos da esquerda. O mais destravado dos temas ou a mais insólita das causas saltam para a agenda se os líderes da esquerda o determinarem. Com a vantagem acrescida de que depois ninguém lhes pede contas de nada. Lembram-se de Foz Côa e dos mais que garantidos 300 mil turistas que iam visitar as gravuras anualmente? Perguntem por eles agora àqueles que na época fizeram de Foz Côa uma causa e logo verão que resposta levam. E as relevantíssimas comissões de inquérito ao BPN e ao BES que, agora que está em causa a CGD, se transformam em manobra desestabilizadora?
O exercício de agitprop é primário mas talvez por isso funciona sempre. Basta ver como uma declaração absolutamente inócua do ministro alemão das Finanças se transformou num caso. Quando este disse um óbvio ululante semelhante às declarações de inúmeros dirigentes portugueses, socialistas e afectuoso PR incluídos – “Portugal estaria a cometer um erro enorme, se não cumprirem com os compromissos que assumiram. Portugal teria então de pedir um novo resgate. Os portugueses não querem um novo programa e eles também não precisam se cumprirem com as regras europeias” – vimos ser montada à frente dos nossos olhos uma onda de indignação que nem sequer dispensou uma patética nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros junto do governo alemão.
Dir-se-á que no passado não foi muito diferente. Pois não. Só mudava o campo político que dominava este exercício. Mas então teremos de admitir, ou terei eu de admitir, pois a ilusão era minha, que a cultura de uma sociedade não altera muito (quiçá nada, mesmo) a forma como vivemos este fenómeno. À bruteza e analfabetismo que caracterizaram muito do século passado parece ter sucedido um infantilismo que torna tudo ainda mais constrangedor. São os britânicos que depois de terem partido para um referendo como quem vai para umas vulgares eleições constatam que aquele resultado se iria traduzir em actos e, quais crianças, questionam: era mesmo para valer? Não se pode repetir? Agora estou arrependido e quero votar doutro modo… E é Portugal do je suis isto e aquilo à espera que lhe digam qual é o próximo assunto/caso com que se deve emocionar. O destino de Carlos Gouveia não está na agenda.

PS. Perante as imagens da passada semana e das que chegarão na que está agora a começar aquele lugar-comum sobre o aproveitamento por parte do Estado Novo das vitórias no futebol vai deixar de ser comum e vai deixar de ser lugar, não vai?

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