O narcisismo de Ronaldo, a “cobardia” de Santos
Enrique Pinto-Coelho
Observador 24 Julho 2016
A dependência de Ronaldo tem inconvenientes e virtudes. No fim, é o capitão que ganha - e um comentador de sucesso não é necessariamente bom treinador. A análise de Enrique Pinto-Coelho.
A estas alturas do campeonato, já quase ninguém se lembra – e, na verdade, pouco importa, porque entretanto Portugal foi, é e será, durante os próximos quatro anos, campeão da Europa. Mas o Euro 2016 começou mal para a seleção, em particular para Cristiano Ronaldo. Depois do empate contra a modesta Islândia, quando ainda ninguém suspeitava (nem sequer os islandeses) que ia ser uma das revelações do torneio, o tablóide alemão Bild acusou o craque português de ser “o vaidoso mais arrogante do mundo” e de um pecado supostamente maior: recusar-se a trocar de camisola com Gunnarsson, capitão do pequeno país insular e herói instantâneo de todos os que, com mais ou menos frequência e agressividade, adoram criticar CR.
Um vídeo demonstra que Ronaldo tinha dito que trocariam de camisola nos balneários, e o próprio Gunnarsson desmentiu o boato publicado pelo Bild. Mas o mal estava feito. A ansiedade do madeirense, que tinha tudo para bater vários recordes na competição, começou a aumentar, acentuada pelo coro de acusações e também porque, depois de falhar várias oportunidades contra a Islândia, voltou a ficar sem pontaria contra a Áustria. Pior ainda: atirou um penálti ao poste.
A qualificação de Portugal estava em risco. Na manhã do terceiro e último jogo da fase de grupos (o decisivo duelo com a surpreendente Hungria, que parecia ter recuperado o brilho perdido), a paciência do capitão chegou ao limite. O famoso episódio do microfone que acabou num lago retratou o estado de nervos de Ronaldo, mas sobretudo a falta de consideração de alguns meios e a hipocrisia de aqueles que o acusaram das coisas mais disparatadas. Um dos ataques mais patéticos partiu do – até então invisível – presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista. Em vez de criticar uma reação condenável, mas inócua, afirmou tratar-se de um “crime contra a liberdade de informação”. A estação lesada considerou o gesto “muito grave” e chegou a dizer que a atitude de CR envergonhava a nação.
Nenhum destes arautos dos bons costumes teve em conta as atenuantes, mas tornaram-se subitamente compreensivos quando o craque bisou naquela noite e salvou o país de uma eliminação prematura. No dia seguinte, talvez ciente da antipatia que tinha gerado, o Correio da Manhã levantou o polegar: “Ronaldo estás perdoado”.
Sorte e talento
Para bem e para mal, CR está habituado a carregar a equipa às costas – quer no Real Madrid, quer na seleção. A “ronaldodependência” tem algumas virtudes, mas também inconvenientes que convém não ignorar: o jogo torna-se mais previsível e o peso da responsabilidade pode ser excessivo para um só jogador, mesmo quando é estimulada pelo próprio e mesmo tratando-se de um superatleta.
Dentro e fora do campo, Ronaldo não deixa que ninguém lhe faça sombra. Raramente permite aos outros bater livres ou grandes penalidades, invocando, porventura, o razoável facto de ser um dos maiores especialistas mundiais em ambos os lances. No jogo contra a Hungria, A Besta acordou finalmente e marcou dois golos decisivos. O primeiro de calcanhar, uma obra-prima que deveria ter sido escolhido, ex æquo com o remate de bicicleta do suíço Shaqiri, o mais artístico do Euro (em vez disso, os internautas da UEFA escolheram o disparo do húngaro Gera que abriu o marcador contra Portugal).
Antes de marcar o definitivo empate a três, CR tinha assistido Nani no primeiro golo, o que significa que participou em três dos quatro golos de Portugal na fase de grupos (ou seja, as estatísticas do costume, só ao alcance de um sobredotado). Mas o golo mais decisivo para Portugal na primeira fase foi obra de outro islandês: Traustason marcou aos 94 minutos contra a dececionante Áustria, relegando Portugal para o terceiro lugar do grupo F e – milagrosamente, por causa do novo formato alargado – afastando-a da chamada “rota da morte”, a zona mais difícil do quadro onde se encontravam, entre outras, as temíveis Espanha e Alemanha.
“Acho que o fator sorte também faz parte, principalmente numa competição tão curta”, tinha avisado Cristiano antes de chegar a Marcoussis. No final do torneio, o antigo capitão alemão, Philipp Lahm, confirmou que o futebol “é imprevisível” e que, desta vez, “o vencedor em sorte foi Portugal”. Mas o novo colega de Renato Sanches no Bayern também reconheceu que os “jovens talentos portugueses não viajaram até ao topo do futebol internacional por coincidência ou à custa da sorte. Realizaram o sonho deles devido ao talento, trabalho árduo e disciplina, com Renato Sanches a servir como exemplo perfeito”.
O azar, o elemento que tantas vezes perseguira Portugal no passado – contra a França em 1984, a Grécia em 2004 e a Espanha em 2012 (“as coisas são decididas por pequenos detalhes e o penálti de Bruno Alves bateu na barra, ao passo que o de Fàbregas entrou graças ao poste”, admitiu Del Bosque na ressaca do título há quatro anos) – desassombrou finalmente o país que mais meias-finais europeias (quatro) tinha disputado no século XXI.
Portugal teve alguma sorte na final, numa bola ao poste de Gignac; mas também dias antes, num remate ao mesmo poste direito do húngaro Elek. Nesse jogo, Dzsudzsák marcou duas vezes com bolas desviadas pela defesa portuguesa, o que significa que nem tudo foram rosas. Mas, acima de tudo, a equipa nacional – e o selecionador mais do que ninguém – mostrou sempre convicção, uma fé à prova de acasos que culminou na merecida vitória em Saint-Denis, protagonizada por outra escolha polémica de Fernando Santos. Ninguém em Portugal apostava um euro por Éderzito Lopes, do mesmo modo que ninguém acreditou no treinador quando prometeu que só voltaria a casa a 11 de julho.
Quando a seleção defrontou a Croácia, muitos acharam que os oitavos estavam no papo. Eu, que acompanho a imprensa espanhola e tinha acabado de assistir à derrota de La Roja contra os balcânicos, receava o pior. Com o seu pragmatismo inabalável (“todos os adversários são fortíssimos”, repetiu vezes sem conta), Fernando O Sábio soube anular o meio-campo mais elogiado do torneio. O talento de Luka Modrić e Ivan Rakitić (cérebros do Real Madrid e do Barcelona) passou despercebido numa noite em que nem Perišić nem Mandzukić, dois avançados letais, tiveram ocasiões claras. Portugal chegou mais forte ao prolongamento – uma virtude que soube conservar até ao dia da final – e a cabeça de Quaresma apareceu aos 117 minutos para eliminar uma das principais candidatas ao título.
O triunfo do esforço
Na partida contra os croatas, a equipa mostrou várias das características que a definiram ao longo do torneio: se é verdade que foi, demasiadas vezes, contida e aborrecida, também o é que soube progredir e sofrer, ser paciente, escolher o caminho mais seguro a cada momento. Além de fugir a sete pés de favoritismos, Fernando Santos não escondeu a sua obsessão pelo equilíbrio, palavra-chave sublinhada a vermelho no manual do futebol moderno. A ideia é simples: atacar implica correr riscos e desorganizar a defesa. Quando acusaram Portugal de jogar “feio”, o selecionador respondeu: “Aborrecido foi para os croatas, que foram para casa”. Também voltou a garantir que os jogadores iriam “morrer em campo para dar uma alegria ao povo” e elogiou uma faceta pouco vistosa, mas pelo menos tão importante como marcar golos: “A arte de defender também é uma grande arte”.
A ideia é simples: atacar implica correr riscos e desorganizar a defesa. Quando acusaram Portugal de jogar “feio”, o selecionador respondeu: “Aborrecido foi para os croatas, que foram para casa”. Também voltou a garantir que os jogadores iriam “morrer em campo para dar uma alegria ao povo”
A seguinte vítima foi a Polónia, que aproveitou um erro de Cédric para marcar logo aos três minutos. Noutras circunstâncias, Portugal ter-se-ia desmoronado: basta recordar a primeira parte contra a Alemanha no Mundial 2014, que acabou 3-0. A Pólonia não é a Alemanha, mas ainda assim: desta vez, a mentalidade era outra. Aos poucos, as figuras polacas perderam brilho – em particular Lewandowski, que depois de marcar o seu único golo em França não voltou a deixar rasto. A equipa do Leste foi de mais a menos – exatamente o oposto do rival, que viu nascer uma estrela nesse dia: Renato Sanches, autor do golo que conduziu Portugal às grandes penalidades.
O primeiro a bater foi CR. Em vez de reservar-se para o fim, como tinha feito na meia-final contra a Espanha em 2012 (não houve quinto penálti por causa dos erros de Moutinho e Alves), marcou o primeiro da série. A seguir bateu Sanches, que com 18 anos deu uma lição de maturidade e coragem. O “miúdo” deu um passo em frente num cenário onde muitos, incluindo alguns dos maiores astros do Olimpo futebolístico – de Zico a Messi, passando por Platini e Baggio – hesitaram, falharam ou arranjaram desculpas para não ter de bater. A angústia do penálti pode ser de tal ordem que um capitão da Alemanha, o veterano Matthäus, alegou ter as solas gastas para não assumir uma grande penalidade contra a Argentina, na final do Mundial 1990 (o golo foi marcado por um defesa, Brehme).
A irrepreensível série de Portugal – Moutinho, Nani e Quaresma também não tremeram – brilhou ainda mais por contraste com as prestações de Schweinsteiger, Pellè e Zaza, os piores desde os onze metros no Alemanha-Itália da jornada seguinte. Mas nem assim abrandaram as críticas a Fernando Santos. Em Portugal, muitos não perdoaram que tivesse encostado Sanches ao lateral direito na segunda parte, ou questionaram decisões ainda menos transcendentes.
“Os cães ladram, a caravana passa”, teria dito Mourinho. Santos limitou-se a baralhar e dar de novo, sem medo de mudar as suas cartas a cada novo desafio. Guarda-redes suplentes à parte, utilizou os outros 21 jogadores que tinha levado a Marcoussis, administrando cansaços e estados de forma, alturas, posições… sempre em função das exigências dos rivais e dos cronómetros. “Atendendo ao tom da competição, a vencedora não podia ser outra que a equipa de Santos, solvente na gestão do grupo, perita na abordagem das partidas, a mais bem preparada para padecer num torneio longo, espesso e eterno, tão gremial e solidária no relvado que soube impor-se mesmo sem Cristiano Ronaldo”, escreveu Ramón Besa no El País. “Foi o triunfo de um homem esforçado, simples e comum como Fernando Santos, a melhor resposta ao vedetismo e à grandiloquência, ao mediatismo e à cultura que preza o impacto, ao espectador impaciente e exigente de hoje”.
Alvos preferidos
Por cá, na véspera da final, o DN publicou um “Almoço Com” o inefável Rui Santos, ilustrado com uma caricatura de André Carrilho. Na conversa com João Céu e Silva, o comentador desportivo invocou o “fator de sorte e de aleatoriedade que não tem que ver com mérito” como explicação para o êxito da seleção, antes de arremeter contra o jogo que a levou até à final: “Já disse que fizemos uma primeira fase a jogar um futebol lamentável e isso não pode ser apagado. (…) Partimos como favoritos e a Islândia, a Áustria e a Hungria não deviam ter-nos feito tremer. Jogámos como um União da Madeira ou um Tondela contra o Benfica, o Sporting ou o Porto”, atirou. “Não foi essa a estratégia montada por Fernando Santos?”, perguntou então o jornalista. “Não vou nisso, é um treinador defensivo. Fernando Santos é um treinador com medo, que prefere esperar e jogar no não erro do que investir num jogo de qualidade ou positivo. Explorámos a oportunidade de um campeonato fraco, por isso estar entre os quatro que chegam à final é diferente de estar entre os quatro melhores. Se apanhássemos uma grande equipa não estávamos na final”, concluiu o entrevistado.
Depois de despachar o treinador, Santos disparou contra o seu alvo preferido: “É bom recordar o trajeto do Cristiano Ronaldo na seleção e o que aconteceu na Federação Portuguesa de Futebol para o integrar e fazer dele o número um em tudo. Até os outros jogadores foram obrigados a mudar de atitude para entrar no clube do Cristiano, que é também a seleção portuguesa. Dito isto, estou à espera de que o José Mourinho se canse de ganhar dinheiro e que chegue rapidamente à seleção nacional. Porque a seleção precisa dessa exigência e de ter os melhores. Deve ser o topo e Mourinho é o único que estará sempre por cima dos jogadores. Viu-se isso no episódio do João Moutinho e da marcação do penálti: o Cristiano não deve ser uma vedeta inativa, mas fez uma coisa que cabe ao treinador. Isso nunca poderia acontecer.”
De uma tacada, o homem que monopolizou a verdade desportiva em Portugal consegue desprestigiar o maior artilheiro da história de Portugal (e o jogador europeu mais determinante da última década), sugerir que Fernando Santos não escolheu os melhores (outra alusão a Ronaldo?), acusar Mourinho de ser ganancioso e lamentar, contudo, que não esteja no comando da seleção (em detrimento de Santos) para impedir que o capitão tente desinibir os colegas nos momentos decisivos, ou talvez para que arrefeça a sua ambição sem limites.
Rui Santos tem todo o direito de preferir Mourinho, obviamente. Mas custa entender tal abundância de cizânia a escassas horas de uma festa histórica, pouco depois de uma vitória incontestável sobre o País de Gales – a grande revelação do torneio, apesar da Islândia – certificada com dois remates de CR7 (o primeiro deles, de cabeça, elogiado até pelo Bild; o segundo foi desviado por Nani). Santos terá as suas razões para suspirar por Mourinho, mas o jogo bonito nunca foi uma característica do The Special One, muito menos uma prioridade. Nos tempos de Pep Guardiola no Barcelona, Mourinho não se importou de pôr todo um Real Madrid a jogar como “um União da Madeira ou um Tondela” contra o rival catalão. Mas Santos tem razão numa coisa: se Mourinho treinasse a seleção em vez do Manchester United, Ronaldo dificilmente seria o líder que levou Portugal à final em Saint-Denis; Nani não teria sido o avançado maravilhoso que brilhou em França (e o melhor sócio de CR dentro e fora do campo) e Pepe – de longe o melhor central do torneio – nem sequer estaria entre os convocados.
Elogios e críticas
Três dias depois do feito, o espanhol Santiago Segurola (jornalista que, por sinal, também escreve no DN) reivindicou a “vigência” de Pepe no Euro, conquistado, “como qualquer torneio”, com um grande desempenho dos centrais. Depois de evocar o papel quase anónimo do brasileiro Piazza em México 1970, de Passarella em 78 e de Scirea em 82, Segurola enumera as virtudes do jogador naturalizado português: “Pepe teve de resolver uma quantidade espantosa de situações defensivas, no um contra um, no jogo aéreo, por antecipação, na ala direita devido a algumas fraquezas de Cédric e nas fricções, onde ganhou uma elevadíssima percentagem de duelos”. Mais: “Tem 33 anos e mantém a ligeireza, a elasticidade e a rapidez para resolver os problemas que tanto detestam os veteranos. Não se tratou de um mês mágico. As suas últimas épocas foram excecionais, e a passada especialmente”. Os elogios prosseguem, mas, a dada altura, o cronista aborda os “preconceitos, alguns deles muito merecidos” que pesam sobre o jogador, protagonista de atos de violência “inadmissíveis”.
Segurola também aproveita o perfil de Pepe para retratar o “legado divisório” de Mourinho no clube merengue: “Dias antes da final da Taça do Rei, em 2013 frente ao Atlético de Madrid, na sua última partida como técnico do Real, Mourinho aniquilou publicamente Pepe, que tinha feito uma moderada defesa de Casillas. ‘Não é preciso ser muito inteligente para saber que estamos a falar de frustração. Não é fácil para um homem de 31 anos ser atropelado por um de 19’, declarou o técnico português em alusão a Varane, que não convocou Pepe para a final que o Real perdeu no Bernabéu. Ninguém imaginaria agora uma decisão desse calibre, motivada pelo despeito e o ego descontrolado. A prova é evidente. Três anos depois daquele alegado epitáfio, Pepe não se deixa atropelar por ninguém”.
Os mourinhistas como Santos tendem a ignorar o lado escuro do seu ídolo, mas antes de abandonar a capital espanhola batendo a porta de trás, El Especial semeou a discórdia no balneário do clube que representara durante três épocas. Além de Pepe, atacou Ronaldo, Sergio Ramos e todos aqueles que, desenganados após inúmeras maquinações e indignidades, quiseram recuperar a normalidade e o bom nome de Casillas, acusado de traição e usado pelo treinador como bode expiatório dos seus fracassos.
De uma tacada, o homem que monopolizou a verdade desportiva em Portugal consegue desprestigiar o maior artilheiro da história de Portugal (e o jogador europeu mais determinante da última década), sugerir que Fernando Santos não escolheu os melhores (outra alusão a Ronaldo?), acusar Mourinho de ser ganancioso e lamentar, contudo, que não esteja no comando da seleção.
O treinador escolhido para o substituir foi Ancelotti, que além de sossegar o balneário merengue conseguiu, à primeira tentativa, aquilo que Mourinho não fora capaz de dar a Real Madrid e Chelsea: a Liga de Campeões, ainda por cima sem insultar nem hostilizar ninguém. O próprio Rui Santos reconhece que o sucessor de Paulo Bento na seleção, tal como o sucessor de Mourinho no Real Madrid, “é um conciliador e apagou todos os fogos que existiam. Alguém tinha de fazer esse trabalho”. Apesar de criticar o “taticismo exagerado” de Fernando Santos e de exagerar o fator sorte (outra forma de lhe negar o mérito), o comentador viu-se obrigado a admitir, perante a insistência do entrevistador, que a improvável vitória portuguesa chegaria graças ao treinador e aos jogadores. “Acho muito difícil”, disse, mas “poderemos ser os campeões do Europeu do não futebol”.
Como é sabido, o “não futebol” ganhou mesmo, para desgosto do football pundit preferido pelos portugueses. Se dependesse de Rui Santos, o engenheiro teria ficado em casa e Éder provavelmente também, uma vez que o apresentador do Tempo Extra tinha defendido a convocação de André Silva, ponta-de-lança da seleção sub-21 e do FCP.
O caso de Rui Santos faz lembrar o de Gary Neville, com algumas nuances. Ao contrário de Neville, o ex-jornalista de A Bola nunca foi jogador, mas ambos partilham um estatuto de comentadores televisivos de excelência nos respetivos países. As análises de Neville na Sky Sports tiveram tal sucesso que acabou sendo contratado pelo Valencia como sucessor do competente Nuno Espírito Santo. A experiência durou quatro meses e foi um fracasso total, mas foi útil para demonstrar algo tão óbvio quanto esquecido: uma coisa é falar na televisão, outra muito diferente é gerir uma equipa e guiá-la num torneio.
Ao desprezar Cristiano Ronaldo e o papel que desempenha na seleção, Rui Santos esquece que, sem ele, Portugal não se teria apurado para o Mundial 2014 nem para muitos outros campeonatos e fases. Também parece ignorar que CR não goza do respeito dos outros jogadores por ser mais atlético ou bonito, por vender mais camisolas ou falar mais alto, mas sim pelos anos de esforçado serviço em prol do país. Também não conquistou a braçadeira de capitão por acaso: é o jogador com mais participações e recordes da Federação Portuguesa de Futebol, e um dos mais comprometidos, profissionais e competentes da história do futebol.
O capitão
Aos 31 anos, o balneário – quer em Madrid, quer em Portugal – reconhece nele um líder que se fez a si próprio, e que – por sorte para todos – melhora com o tempo. O maior inimigo de Ronaldo (e estamos a falar de muitos milhões de detratores em todo o planeta) sempre foi o próprio Ronaldo, as suas declarações ingénuas e/ou inapropriadas. A última grande controvérsia antes de defrontar a Islândia surgiu em fevereiro, na sequência de uma derrota do Real Madrid em casa. “Se todos estivessem ao meu nível, seríamos primeiros”, afirmou. “A imprensa é injusta comigo. Sempre. Aqui em Espanha ainda se discute o meu valor. Parece que estou na merda, mas os números e as estatísticas não enganam”. No dia seguinte, ciente do turbilhão que tinha causado, apressou-se a esclarecer: “Quando disse o que disse, referia-me ao nível físico, não de jogo. Eu não sou melhor do que nenhum dos meus companheiros”.
Nos primeiros anos em Manchester, ou mesmo em Madrid, fez declarações bem mais polémicas sem quaisquer emendas posteriores. Diga o que disser, haverá sempre quem o considere “o vaidoso mais arrogante do mundo”, mas também quem reconheça nele um dos maiores prodígios que o desporto-rei produziu.
A má imprensa que padece é ainda mais incompreensível quando comparada com o tratamento reservado a outros craques. Apesar de ter dito e feito as coisas mais antidesportivas ao longo de décadas, Maradona é considerado quase um deus em vários países. Messi foi condenado a 21 meses de prisão por fuga ao fisco e o Barcelona reagiu com uma campanha delirante, que fez corar inclusive os adeptos do clube: #TodosSomosLeoMessi. O guarda-redes de Itália, Gianluigi Buffon, simpatizou com Mussolini e esteve implicado num escândalo de jogos combinados na Série A.
A lista é longa, mas ninguém beneficia de maior condescendência do que o terceiro melhor jogador da atualidade. Zlatan Ibrahimović agrediu três colegas do Ajax no mesmo treino (Schneider, Heitinga e Van der Vaart, que ficou lesionado), incompatibilizou-se com Messi no Barça e tentou bater em Guardiola, que desde então não fala com ele. O historial de agressões a colegas e adversários daria para escrever vários volumes, mas dificilmente teriam tanto impacto como algumas das suas frases mais célebres. Quando o jornal Dagens Nyheter escolheu Björn Borg como o melhor desportista de sempre na Suécia, Ibra respondeu: “Com todo o respeito, sou o primeiro, segundo, terceiro, quarto e quinto” melhor desportista sueco. Antes de abandonar Paris rumo ao Manchester United do seu adorado Mourinho, sentenciou: “Cheguei como um rei, parto como uma lenda”. E ainda: “Se sou dez vezes melhor, tenho de ganhar dez vezes mais”.
Ao invés de Cristiano, Zlatan parece piorar com os anos (agora diz que vai ser um deus em Manchester). Por outro lado, o madeirense nunca fugiu aos impostos, não participou em jogos combinados nem foi detido por violações, consumo de drogas ou álcool na estrada (como tantos outros jogadores). Os seus maiores excessos são, porventura, a teatralidade e o narcisismo, encorajado por uma corte de bajuladores que o acompanham a todo o lado. Mas também tem inúmeras virtudes, para além das já enunciadas: é, ou parece, bom filho, bom pai e bom irmão; está envolvido em inúmeras causas filantrópicas e tem uma paciência fora do comum com os fãs – e, sobretudo, com os inimigos que o provocam sem piedade a toda a hora, dentro e fora dos estádios.
Ao invés de Cristiano, Zlatan parece piorar com os anos (agora diz que vai ser um deus em Manchester). Por outro lado, o madeirense nunca fugiu aos impostos, não participou em jogos combinados nem foi detido por violações, consumo de drogas ou álcool na estrada (como tantos outros jogadores).
Em Saint-Denis, depois da violenta pancada de Payet, foi vaiado pelo público francês mas acabou sendo aplaudido, quando todos compreenderam que a dor e a vontade de continuar eram autênticas. Ronaldo deve ter sido o jogador com mais faltas e penáltis por marcar do Euro, mas Portugal seguiu em frente mesmo sem ele em campo. A França começou a apertar e parecia que ia marcar a qualquer momento. “Quando Deschamps substituiu Payet por Coman, a França teve os seus melhores minutos” escreveu o grande Alfredo Relaño, diretor do desportivo As e comentador da Cadena SER. “Mas Santos, que sabe latim e informática, colocou Moutinho e Éder em campo e o lanço de grande perigo francês desvaneceu-se”.
No prolongamento, as bolas começaram a chegar a Éder, que “as entretinha, as guardava, as devolvia”. Depois chegou o minuto 109, o mais importante da história para a equipa das quinas. “A partir daí, tudo consistiu em administrar os oito minutos restantes, ante uma França esgotada e sem fé, para finalmente levantar ao céu a Taça que Xavi tinha depositado junto à linha lateral nos prolegómenos. Admirável este Portugal que só tinha ganho uma partida nos 90 minutos, mas que soube sair de situações difíceis. O futebol também é isto.”
Admirável também a inteligência do engenheiro, que encontrou o caminho para o título dando primazia ao grupo sobre o indivíduo, administrando os egos das estrelas sem tirar-lhes protagonismo nem recorrer a atitudes autoritárias, tantas vezes contraproducentes. Tudo uma questão de equilíbrio, nada a ver com cobardia.
Enrique Pinto-Coelho é jornalista, autor do livro “Portugal das Maravilhas”
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