O azar dos Távoras

Paulo de Almeida Sande
Observador13/7/2016

As sanções são injustas e provavelmente contraproducentes. Há que agir em conformidade e rejeitar a ideia de azar. Nem sebastianismo nem tavorismo: Portugal deve dar-se ao respeito.

Ao longo dos anos, como todos os portugueses que viveram e trabalharam no estrangeiro e com estrangeiros, habituei-me à crítica directa disfarçada de franqueza, ao remoque disfarçado de lisonja, à incompreensão disfarçada de ignorância ou ao desdém nem sequer disfarçado.
Azar dos Távoras: eu era um “petit portugais” e sê-lo-ia sempre. Não importa quão alto chegasse na hierarquia de uma empresa, fosse Presidente de uma organização internacional, de um grande banco ou honrado trabalhador numa companhia de construção, empregado doméstico ou dono de uma padaria, seria sempre “le portugais”. Por definição, “petit”.
Havia naturalmente – e também estereotipadamente – diferenças, mais ou menos subtis. Os espanhóis olhavam-nos com a condescendência do vizinho grande e rico, os franceses com a cortesia desdenhosa devida aos porteiros e mulheres a dias dos seus pátios, os alemães com a altivez da superioridade inata, os italianos como irmãos (mais) desafortunados na latinidade. E, nos Estados Unidos, servia a palavra “Europa” para afastar a ideia de ser Portugal um país perdido nos recessos do Mundo, algures entre Nenhures e a Asifricamérica latina.
E os ingleses, nossos velhos aliados? Terá escrito Sir Colville Barclay, Embaixador britânico em Portugal em 1929, a crer numa citação do Professor Glyn Stone: “a nação (Portuguesa) é fisicamente, mentalmente e moralmente degenerada. Cerca de 80% é seja tuberculosa ou sifilítica, 60% analfabeta e quase todos moralmente incuráveis, voláteis ou incapazes de um esforço continuado ou de um pensamento lógico”. Excessivo, sem dúvida, mas ilustrativo.
Azar dos Távoras: as guerras coloniais colocaram Portugal no mapa por más razões. O Mundo vituperou o último dos velhos Impérios europeus, talvez surpreendido com o facto dessa Nação “desconhecida”, pequena e pobre, persistir numa empresa abandonada já por alemães, galos, ítalos e ingleses. Mas o 25 de Abril, e o que se lhe seguiu, devolveram-nos às bocas desse mesmo Mundo, sem condescendência, mas com receio – de uma Cuba na Europa -, admiração até – um golpe militar sem sangue (quase?), respeito por fim – pelo regresso da democracia à finisterra. E ao entrarmos na União Europeia, em 1986, alguns jornais alemães exclamaram “vêm aí os pobrezinhos”, saudando assim a chegada ao clube europeu desta velha Nação multissecular (como não é a Alemanha, nem a maior parte dos Estados europeus).
Sorte dos Távoras: a nossa adesão à União Europeia revelou-se um sucesso. Aos poucos, com o crescimento económico e a crescente participação de portugueses em organizações e instituições internacionais, com a inserção cada vez mais bem sucedida dos nossos emigrantes nas respectivas comunidades de destino, foi-se desenhando uma nova imagem de capacidade e sucesso. Ainda éramos “les portugais” mas já menos “petits” e decerto mais capazes “de um esforço continuado ou pensamento lógico”.
Aos meus colegas e amigos estrangeiros que me perguntavam sobre as razões do nosso persistente défice de desenvolvimento, eu colocava o desafio de imaginarem o seu próprio país, fosse qual fosse, posto perante as circunstâncias em que Portugal sempre existiu: na extrema de um continente rico e povoado, encostado ao fundo Oceano e com um poderoso vizinho pelas costas, de onde durante séculos não veio bom vento nem casamento; um país marcado pelo azar dos Távoras, a seguir-se a uma das maiores tragédias naturais de que a Humanidade tem memória; pobre de recursos, com escassa população, afastado do centro global onde fervilhava o comércio e se cruzavam as rotas do Mundo. Uma faixa de terra à beira Atlântico a fitar sem ver um Ocidente que viria a ser futuro da Humanidade. Os portugueses.
E foi a respeito deles, de nós, que escreveu no prestigiado jornal Politico, Tunku Varadajan, também Research Fellow em Stanford. Disse ter a vitória de Portugal sido “o (seu) maior feito como nação desde o dia em que foi admitida na Comunidade Económica Europeia, em 1986” (um bocado exagerado, mas pelo menos não foi escrito por portugueses). E Varadajan, que provavelmente não conhece a história dos Távoras, acrescenta a nosso respeito: jogámos como somos, nós que usamos “os escassos recursos da terra de modo sábio, sagaz, esticando-os ao máximo. De outro modo, como poderia um pedaço de terra no extremo ocidental da Europa ter construído um império de tal magnitude? Há uma determinação, uma coragem defensiva, uma teimosia infatigável dos portugueses, que os serviu bem no império e os serviu bem no campo de futebol no domingo à noite”. Varajadan diz o que pensamos de forma eloquente. E aos franceses que, atávicos no modo chauvinista como desmereceram a qualidade da selecção dos “petit portugais”, terá servido – ou não? – uma lição simples: os estereótipos não jogam futebol; e menosprezar o valor alheio é o primeiro passo para a queda.
Mas a festa acabou ontem. Ao orgulho de uma vitória inédita, e ainda bem que a tivemos, segue-se a dura realidade. Pela primeira vez na história da UE foi reconhecido que dois países incumpriram as regras orçamentais sem terem tomado as medidas recomendadas pelo Conselho da UE. Vamos ter de esperar uns dias para conhecer as sanções em concreto. Como argumentará o governo, sabendo-se da importância desses argumentos? A Comissão decidirá em função deles e a sua decisão deverá ser mesmo final, pois é difícil a constituição de uma maioria de bloqueio no Conselho, ainda por cima a ter de reunir para o efeito em pleno período estival. E o pior que nos poderia suceder é vir a haver uma diferença de tratamento em relação a Espanha (o governo espanhol apressou-se a anunciar medidas concretas, ainda que dependam do próximo governo).
Quase toda a gente em Portugal afirma a injustiça das sanções. E elas são injustas se pensarmos nas vezes que o critério do défice foi violado, como recordou o IFO Institute, da Universidade de Munique: 165 casos entre 1999 e 2015, 114 vezes das quais sem justificação. Nunca houve consequências; à frente dos infractores está a França, com 11 vezes, seguindo-se Portugal, Grécia e Polónia com 10, Reino Unido 9, Itália 8, Hungria 7, Irlanda e Alemanha 5. Porquê então, agora, Portugal e Espanha? Circunstâncias, oportunidade, Brexit? Ou pura e simplesmente o azar dos Távoras? Provavelmente um pouco de tudo isso. Menos o azar dos Távoras, que não existe. Tendo ou não conspirado contra Dom José, foram convenientes bodes expiatórios da luta do Marquês contra a velha Ordem. Nada que não tenha sucedido em todas as Cortes europeias num qualquer momento da História.
As sanções são injustas e provavelmente contraproducentes. Há que agir em conformidade e rejeitar a ideia de azar. Nem sebastianismo nem tavorismo: Portugal deve dar-se ao respeito. Consumado o inédito reconhecimento do incumprimento tem de se mobilizar, corrigir os erros de trajectória, fixar um rumo que assegure o respeito das instituições europeias, dos seus parceiros na União, e dos mercados. Só assim recuperará a imagem agora abalada e a credibilidade em risco. Entrar em negação ou optar por fugas em frente assentes na confrontação e na resistência seria um erro fatal, para um país fragilizado e sem alternativas sérias à sua permanência na UE.
Qualquer outra atitude seria deletéria. Restar-nos-ia imputar a culpa aos Távoras. Ao azar.

PS. A minha sincera e comovida homenagem aos militares que morreram no desastre do C-130. As Forças Armadas Portuguesas foram sempre um exemplo de coragem, disciplina e mérito e merecem o respeito de todos os portugueses. A morte em serviço, como é o caso, é um risco próprio à profissão de militar, assumida com galhardia e valor. Para eles não haverá nunca azar, só serviço à Pátria e dedicação aos seus. Morreram também por nós. Honra lhes seja.

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