CHAMPANHE MORNO

Ricardo Araújo Pereira 
Visão BOCA DO INFERNO 14.07.2016 às 7h50 

O que é que estes rapazes fizeram ao meu país? Como é que o Éder se atreveu a chutar dali, de onde era evidente que seria impossível? Não ouviu o que disseram dele os colunistas e as redes sociais?
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e
idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os
pastéis de Tentúgal
Jorge de Sousa Braga
Não sei se estou preparado para isto. Quando, depois de levantarem a taça, os jogadores da selecção começaram a cantar aquela linda canção (cito a letra: “E esta merda é toda nossa, olé”), percebi finalmente. Naquele momento, eu, que sou um português antigo, ainda estava a trabalhar na lista das desculpas para justificar a derrota. Jogaram sujo, lesionaram-nos o Ronaldo, é sempre difícil jogar contra a equipa da casa, o livre do Raphael Guerreiro, que pena, bateu na trave. Renato Sanches, que tem menos 25 anos do que eu, já estava a saltar com os amigos, reclamando a posse do território francês, cinco metros à frente do Presidente da França. O mais impressionante era a desfaçatez, a desinibição, a alegria insolente, uma maneira tão pouco portuguesa de ser português. Eu não sabia o que era aquilo.
Mas devia ter desconfiado. Primeiro, Sara Moreira e Patrícia Mamona tinham sido campeãs nos europeus de atletismo. E depois, as traças. Milhares de traças enormes, no estádio da final. Era óbvio que tinha acontecido qualquer coisa. Só no fim do jogo se percebeu o que era. As traças tinham acabado de comer 11 milhões de xailes negros. Por isso é que eram tão grandes e gordas. Quem tiver uma explicação melhor, ponha o braço no ar. Ninguém? Bem me parecia. Só pode ter sido isso: as traças tinham carcomido uma espécie de Portugal antigo e foram celebrar junto do Portugal novo. 
Quando, a 19 de Junho, após o segundo empate frente a uma equipa fraca, o seleccionador disse que só voltaria a Portugal no dia 11 de Julho, e com a taça, abanei a cabeça. Neste momento, gostaria muito que o eng. Fernando Santos me dissesse cinco números e duas estrelas. Fui um português antigo até ao fim do jogo, nunca acreditei no que dizia Ronaldo, que é um português novo há muito tempo, e por isso nunca me passou sequer pela cabeça que fosse preciso pôr o champanhe no gelo. Após o apito do árbitro, festejei com champanhe morno, como todos os parvos.
E agora? O que é isto? Onde está aquela tristeza mansa, aquele conforto de quem não se deixa inquietar por sonhos improváveis, aquele encolher de ombros de quem tentou sem convicção nenhuma, excepto a convicção de que nem valia a pena tentar? O que é que estes rapazes fizeram ao meu país? Como é que o Éder se atreveu a chutar dali, de onde era evidente que seria impossível? Não ouviu o que disseram dele os colunistas e as redes sociais? Não ouviu o que eu próprio disse exactamente um segundo antes de ele chutar? Onde está a certeza da minha pequenez, a minha vergonha, o meu complexo de inferioridade? Que mundo novo é este em que o futebol são 11 contra 11 e no fim esta merda é toda nossa? Eu já estava habituado ao antigo Portugal e agora vou ter de aprender a gostar deste. Não sei se estou preparado para isto.

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