O futebol enquanto experiência religiosa

Bruno Vieira Amaral
Observador 10/7/2016

Se indagássemos todas as causas da felicidade dos homens descobriríamos, espantados, a preponderância dos pequenos nadas, dos gatilhos insignificantes.

Raras vezes terei sentido a alegria feroz, próxima da beatitude, das manhãs de quarta-feira de futebol europeu. A antecipação de um jogo do Benfica enchia-me de uma felicidade prévia e completa, imaginando não sei que bem-aventuranças futuras, como se o tempo e a vida existissem para chegar àqueles finais de tarde em que, ao contrário dos outros, havia um acontecimento tremendo e real. O mesmo acontecia, numa outra escala de emoção, com um filme ou uma série que transformava radicalmente a natureza daquele dia, inundando-o de um sentido que nenhum outro tinha. Creio que ainda hoje continuo à procura desse sentimento de suave antecipação não em relação ao que me é exterior mas à própria felicidade, como se esses vislumbres de plenitude indiciassem a existência de um estado perpétuo de doçura, rios de tranquilidade. Será necessário dizer que os noventa minutos de futebol nunca estavam à altura dessas promessas de véspera?
Posso dizer que o motivo daquela felicidade era fútil, banal, mas se o sentimento era vivo, intenso e verdadeiro o que interessa se a causa não estava à sua altura? A causa não tem de sustentar o sentimento, tem apenas de o desencadear. Se indagássemos todas as causas da felicidade dos homens descobriríamos, espantados, a preponderância dos pequenos nadas, dos gatilhos insignificantes – a sombra de uma árvore, abrir a porta do prédio e sair ao sábado de manhã para encontrarmos a rua vazia, uma certa canção. Seria justo renegarmos a felicidade que despertaram? Dizer que os filhos, um amor, uma obra ou um império proporcionam alegrias mais duradouras é uma afirmação sensata, dificilmente desmentível, mas a aparente frivolidade de certas causas não fará da felicidade que delas resultou uma felicidade mais pura, uma felicidade platónica no sentido estar mais próxima da própria ideia de felicidade, quase independente do objecto que a provocou?
Sempre que encontro ou tenho notícia de alguém que entende aqueles meus sentimentos infantis, sinto-me um pouco menos só. Há uns meses, o médico João Lobo Antunes disse o seguinte numa entrevista ao Expresso: “Por vezes, as pessoas pedem mais tempo para coisas que parecem triviais. Um doente pediu-me mais três meses para ver o campeonato do mundo de futebol. Viu-o e depois morreu.” Não sei o nome do doente, não conheço a sua história, nem sei que idade teria. No entanto, naquele último pedido detecto uma afinidade intensa, como se tivesse encontrado um irmão perdido. O que eu sentia naquelas manhãs de quarta-feira ia além da antecipação de um simples resultado desportivo. Era a expectativa vaga, informe, de todas as coisas por concretizar, como se a vitória do meu clube – docemente acariciada e moldada pelo desejo – representasse tudo aquilo por que ansiava sem que o soubesse definir. Em certos dias de lassidão, abandono e tédio, que ainda os tenho, pergunto-me para onde terá ido aquela capacidade de me alegrar com as coisas frívolas da vida. O desejo daquele homem – o de ter o tempo suficiente para ver o campeonato do mundo de futebol – fez-me regressar à infância e à época em que a expectativa de um Verão com jogos do mundial insuflava o meu espírito de uma alegria indizível.
Como é patético o ser humano! Na iminência da morte pede tempo para ver um campeonato do mundo de futebol. Não quis fazer as pazes com ninguém porque talvez não tivesse nenhum conflito por resolver, nenhum agravo que quisesse reparar. Não pediu tempo para fazer aquela viagem especial. Tudo o que queria era apenas ver o campeonato do mundo. E, no entanto, como eu entendi a pungência daquele desejo! Eu próprio cheguei a perguntar-me a quantos campeonatos do mundo iria assistir, a fazer contas e a concluir que teria direito talvez a quinze e a entristecer-me com a ideia de que um dia eu já não estaria cá para ver o campeonato do mundo. Era uma medição do tempo um tanto ridícula, bem sei, talvez devesse medir o tempo em colheitas, em estações, em queimas do madeiro ou, quando eles nascem, pela idade dos filhos. Que idade terão quando eu morrer? O que terão feito? O que os verei alcançar, doutor? Percebe agora a minha alegria nas manhãs daquelas quartas-feiras? Sabe que a criança que eu era desejava saber quantas manhãs idênticas ainda iria viver e que desde que pudesse viver aquelas manhãs a vida ser-lhe-ia bela e aprazível e o mundo, apesar de toda a fealdade no resto do tempo, um lugar justo para se viver?
Aquele homem moribundo, deitado numa cama de hospital, animal indefeso sem qualquer hipótese de escapar à morte, é aquela criança que eu fui, doutor. É a criança que segura a sua mão e lhe pede que mantenha a morte à porta do quarto, não a deixe entrar ainda, doutor, só mais um pouco, só o tempo de ver mais um campeonato do mundo, só mais este Verão, este mês de sol, relva, tristeza, alegria, só estes trinta dias de ordem aparente, beleza, celebração final. Mantenha a morte à porta desta quarta-feira europeia, à porta deste domingo em que logo à noite joga a selecção. O resultado não interessa. Peço-lhe apenas que esta manhã dure para sempre, doutor.

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