A senhora Hoff

João Taborda da Gama
DN 20160703

Passou despercebido em Portugal, mas no mês de junho assistiu-se a um bonito espetáculo na arena da idiotia das organizações internacionais. A senhora Elizabeth Hoff é a representante da Organização Mundial da Saúde na Síria. De que se foi lembrar a senhora Hoff, sendo que é representante de uma organização das Nações Unidas num país onde grassa uma sangrenta guerra civil, onde centenas de milhares de pessoas morreram, onde há milhares de deslocados, onde o ISIS mata como mato, onde os russos bombardeiam a bombar? De dar um puxão de orelhas aos sírios para largarem o cigarrinho, que andam a abusar, e que isso lhes faz mal à saúde.
Isto deve ter deixado o sírio típico a tremer como varas verdes: que importa que 80% da eletricidade tenha sido cortada, que o desemprego tenha quadruplicado, que 80% vivam agora na pobreza? Que importa até que a esperança média de vida tenha descido 20 anos nos últimos cinco? Nada disto importa, porque fumar prejudica gravemente a sua saúde e a dos que o rodeiam. Pode até causar a impotência.
É por isso que a senhora Hoff avisou que é preciso tomar medidas contra o consumo, sobretudo entre os jovens e as mulheres e até ... adotar os maços de tabaco neutros (sem logótipos ou cores, apenas com a marca num formato standard). A senhora Hoff não foi corrida da Síria - daquela maneira que por aquelas bandas se usa para pôr a malta a correr dali para fora - pela curiosa circunstância de a sua mensagem lunática agradar a todos. Ao governo sírio interessa solidificar a narrativa do está--tudo-bem, o país segue apesar da guerra, e sim, vamos fazer todos os esforços para combater esse flagelo do ISIS, quer dizer do tabaco. E ao ISIS também interessa, pois a senhora Hoff, insuspeita, fez o favor de referir o que eles já andam a dizer há muito tempo e ninguém faz favor de os ouvir, que há coisa que não há pior, se há coisa que é preciso combater é esse vício do cigarrinho, e em especial das mulheres a fumar - para além de lá no ISIS também gostarem de maços sem cores, nem marcas, tudo muito noir. Do lado do governo sírio, o senhor Ahmad Khlefawy, que é o secretário de Estado da Saúde, veio dizer que "o conflito não pode ser uma desculpa para os sírios colocarem as suas vidas em risco" (sic, sem smiles), e que sim, sim senhora, vão fazer todos os esforços que estiverem ao alcance. Do lado do ISIS não se conhece ainda reação oficial. Do lado da OMS, continuam a achar tudo muito normal pois o comunicado sobre a coisa continua online, apesar de na imprensa internacional ter sido um forró de gozo.
Havia várias maneiras de pegar neste assunto, a mais séria das quais é concatenar a preocupação deste aviso da Organização Mundial da Saúde com tudo o que fizeram e não fizeram as Nações Unidas na Síria desde o início da guerra. Outra é pensar no que pode passar na cabeça de uma pessoa para se prestar a certos papéis, a síndrome do uber-burocrata, estou só a cumprir o meu papel, eu falo de tabaco, a guerra é um problema dos políticos, não é um problema que eu possa resolver, eu só cumpro a lei. Outra ainda seria usar este exemplo para questionar o próprio papel da OMS e o sistema de agências das Nações Unidas, e em concreto a sua desatualização e falhanço muito em especial no contexto da luta contra a droga e até mesmo neste caso do tabaco.
Mas também se pode procurar algo de positivo nesta comunicação da senhora Hoff, porque há sempre coisas boas nas coisas más. E existe. Descontando o tempo e o lugar em que a coisa foi feita, há na posição da OMS um dado interessante, a chamada de atenção para a diferente nocividade do tabaco tendo em conta o modo como é consumido. Neste caso, chama a atenção para o consumo em cachimbo de água (shisha), e para o facto de ter uma nocividade muito superior, 20 vezes, à dos cigarros normais. A relevância de tudo isto é a utilização, dentro do tabaco, de um critério de nocividade que permite distinguir os vários tabacos e os diferentes modos de consumo. E isto é relevante precisamente numa altura em que começam a ser comuns, também em Portugal, formas diferenciadas de consumo de tabaco, ou de nicotina. Estas outras formas de consumo (cigarro eletrónico, tabaco aquecido, cachimbo de água) têm de ser aferidas tendo em conta a sua nocividade, e desta diferente nocividade resultarem consequências diferentes, tanto no plano da fiscalidade como da comunicação e publicidade. Para o Estado não pode ser igual fumar coisas com nocividades diferentes - até a senhora Hoff já parece ter percebido isso.

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