Nossa Pátria amada
Daniel Oliveira
Expresso, 2016.07.11
Por princípio, não escrevo sobre futebol nesta coluna. Porque o faço noutro jornal e porque considero que devemos evitar confusões: à política, que é o tema que aqui trato, o que é da política, à bola o que é da bola. Mas ser campeão europeu não é coisa que aconteça todos os dias. Não é, na realidade, coisa que aconteça algum dia. Podemos orgulhar-nos de ser os primeiros a ter seleção sénior de futebol a conquistar algum título. Ainda assim, não é sobre futebol que vou escrever.
Ninguém diz “vejo futebol para esquecer”. Mas podia. A vitória do nosso país ou do nosso clube é como uma bebedeira. A euforia que senti ontem e que ainda hoje me acompanha não podia ser mais real. E não podia ser mais injustificada. Quando passar o efeito, vai estar tudo na mesma. Ao contrário dos momentos que mudam as nossas vidas coletivas ou pessoais, ao contrário das alegrias amorosas ou familiares, das conquistas políticas ou científicas, a vitória no desporto só não é inconsequente para quem esteve diretamente envolvido nela.
Esta vitória foi importante para Portugal? Foi totalmente indiferente para o nosso futuro coletivo. Todos os problemas que tínhamos se mantêm intactos. Assim sendo, faz sentido este ter sido, como Nação, um dos dias mais felizes dos últimos anos? Faz todo o sentido. Se a felicidade fosse pragmática era bem infeliz, a coitada. Até porque a vida nunca acaba bem, como se sabe. Por isso, hoje estou embriagado de felicidade. E só penso no resto quando vier a ressaca. Alguns, sempre sérios, chamam a isto alienação. Têm razão. Só não têm razão em não compreender como ela é importante. Não há felicidade, a de cada um de nós e a de nós juntos, sem prazeres imediatos. Pensar que sim é um dos erros daqueles que nos pedem sempre sacrifícios para hoje e prometem apenas alegrias para um futuro que nunca chega.
Todas as nações precisam destes momentos de reencontro. Não porque isto mude o que elas são ou contribua para serem melhores. Apenas porque, como se viu na noite de ontem e se vai ver nos próximos dias, é neles que descobrem que as une uma identidade, mesmo que imaginária, e um conjunto de afetos, mesmo que aparentes. Ao que esta descoberta mobiliza chamamos patriotismo. Ele pode alimentar sentimentos de superioridade, xenofobia e nacionalismo. Ou, se conseguir ser inclusivo, cosmopolita e crítico, o sentimento de pertença a uma comunidade indispensável à solidariedade e à democracia.
Mas este momento também deixa evidente uma coisa que não é fácil para os candidatos a engenheiros das almas: que a ideia de comunidade, sem a qual a democracia não é possível, não se decreta. Basta andar na rua por estes dias para perceber que os portugueses são, antes de europeus ou bracarenses, portugueses. Essa é a sua marca identitária mais forte. Se ela for inclusiva, e não étnica, se se basear na cidadania, e não no sangue, se o Quaresma, o Pepe e o Éder couberem no nosso patriotismo, e não apenas por serem futebolistas, essa marca identitária é muitíssimo útil para os laços que uma comunidade precisa para ser mais justa, solidária e democrática. E ela explica porque é que é tão absurdo olhar para o patriotismo como um papão que só trará guerras e ódio. É estúpido cantar emocionado o hino nacional, no início de cada jogo, e depois negar a importância dessa emoção na política.
Quando deixarmos de sentir vergonha em falar da nossa “Pátria amada”, porque ainda a associamos ao pior da nossa História, talvez consigamos mobilizá-la para o melhor que ainda podemos fazer: um lugar onde as pessoas vivam com dignidade, liberdade e, seja qual for a sua origem, cidadania plena. O patriotismo é um valor que se pode encher com muitos outros, bons ou maus. Mas o sentimento de pertença que convoca, aquele que nos enche de felicidade por estes dias, nem pode ser ignorado nem deve ser desperdiçado.
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