Legislaturas roubadas

Luís Aguiar-Conraria
Observador 20160720

Por muito inusitado que nos tenha parecido num momento inicial, a verdade é que quem ganhou as eleições, aquele que os eleitores (ou, pelo menos, os seus representantes) preferiram, foi António Costa.

No passado sábado, o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho deu uma entrevista ao Diário de Notícias e à TSF. É uma longa entrevista, bastante interessante, mas que fica marcada por uma declaração explosiva. Diz Passos Coelho que, passo a citar, o “Governo tem obrigação de cumprir a legislatura que roubou”.
É verdade que muita gente continua a dizer que Pedro Passos Coelho ganhou as últimas eleições legislativas. Na altura do “roubo” até circularam muitas piadas, algumas de muito mau gosto, como dizer que o Benfica já não era campeão porque o Porto e o Sporting iam juntar os seus pontos. Mas de um líder político espera-se um pouco mais de bom senso, em especial de um que foi primeiro-ministro num dos momentos mais difíceis que a nossa democracia atravessou.
Penso que a dificuldade em aceitar a derrota tem mesmo a ver com a dificuldade em entender as regras. Enquanto no regulamento do campeonato nacional de futebol está escrito que o vencedor do campeonato é o clube que tem mais pontos, em lado algum está escrito que o vencedor das eleições legislativas é aquele que tem mais votos. E isto é assim em Portugal como noutros países. Por exemplo, George Bush foi eleito tendo conseguido menos votos do que Al Gore e por essa Europa fora não faltam exemplos de governos liderados por partidos que não foram os mais votados.
Em Portugal, o regulamento eleitoral explica como se convertem votos em deputados (favorecendo coligações, diga-se). A Constituição entrega ao Presidente o poder de convidar um primeiro-ministro para formar governo, mas dá à Assembleia o poder para rejeitar esse governo. São essas as regras e foi o que aconteceu. Se não gostam, paciência. É um pouco como aquela malta que acha que Portugal não pode ser campeão europeu porque apenas ganhou um jogo. Leiam as regras da UEFA e logo vêem se pode ou não.
Muita gente responder-me-á dizendo que no passado o partido com mais votos foi sempre o partido que formou governo. Infelizmente, não se pode invocar a história quando a situação que foi gerada com as eleições de 4 de Outubro de 2015 é quase inédita. Com a excepção das eleições de 1985, sempre que a direita foi maioritária no parlamento, o partido (ou coligação) mais votado era de direita. E, naturalmente, sempre que o PS foi o partido mais votado também havia uma maioria de esquerda. Uma só excepção, 1985, não chega para fazer jurisprudência eleitoral.
Ao contrário do que muitos pensam, converter votos individuais numa escolha colectiva não é tarefa fácil. Pelo contrário, é muito fácil imaginar situações em que vários sistemas eleitorais produzem vários resultados distintos. Talvez por isso, há já alguns séculos que este assunto ocupa intelectuais, desde filósofos a matemáticos. Um dos primeiros contributos foi do Marquês de Condorcet, filósofo e matemático, no fim do século XVIII, por alturas da Revolução Francesa que propôs um critério que ficaria conhecido como o critério de Condorcet.
Para o Marquês, uma competição eleitoral com vários candidatos deveria ser dividida em diversas lutas a dois (frente-a-frente entre pares de candidatos). Ou seja, aquele candidato que seja capaz de bater qualquer outro candidato num duelo a dois é a escolha natural. O candidato que vença todos esses frente-a-frente é o chamado vencedor de Condorcet. Naturalmente, não é viável fazer todas as votações necessárias para determinar o vencedor de Condorcet, mas também não é difícil imaginar qual seria o resultado caso fosse possível. Dada a configuração da Assembleia da República eleita, numa eleição entre Costa e Jerónimo de Sousa, Costa ganharia. Tal como ganharia contra Catarina Martins ou André Silva. E, como sabemos, entre Costa e Passos Coelho, a maioria prefere Costa.
Por muito inusitado que nos tenha parecido num momento inicial, a verdade é que quem ganhou as eleições, aquele que os eleitores (ou, pelo menos, os seus representantes) preferiram, foi António Costa. Podemos não gostar da solução política encontrada, e eu certamente não gosto, mas não houve qualquer roubo. E alguém com as responsabilidades políticas de Passos Coelho devia ter mais cuidado com o que diz

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