O rapto da selecção
Rui Ramos
Observador 12/7/2016
O esgotamento do regime foi claro no desespero com que sequestrou a selecção nacional em Belém. Isto não deve estar nada bem, para os oligarcas precisarem tanto do futebol.
Uma coisa foi a vitória da selecção no campeonato da Europa, onde nunca perdeu a cabeça, mesmo depois de perder Ronaldo; outra coisa foram as celebrações populares na rua, que esperavam ocasião desde 1966; e outra coisa ainda foi a tentativa desesperada da oligarquia política para usurpar a alegria nacional: tivemos assim o sequestro dos autocarros da selecção, desviados para Belém; a folga municipal em Lisboa; e o ministro das finanças de cachecol da selecção em Bruxelas.
Em Belém, estiveram os chefes da oligarquia, paramentados a rigor. Quando os jogadores desembarcaram, agarraram-se-lhes como uma espécie de grandes parasitas. Houve sorrisos muito estudados, abraços com grandes palmadas nas costas, e selfies para os assessores porem no facebook. Dir-me-ão: mas certamente que o Estado tinha de assinalar a ocasião. Sim, claro que tinha, embora esta seja a mesma oligarquia que durante anos subsidiou uma razoável quantidade de artigos, livros e congressos a castigar o modo perverso como ditadura salazarista explorava o futebol.
Se alguém, daqui a uns tempos, tiver de ilustrar o esgotamento deste regime, poderá muito bem começar pelo dia de ontem. Não foi só o rapto da selecção. Foi o sorriso bacoco com que comunistas e bloquistas esperaram enquanto o presidente, a pretexto do entusiasmo pela selecção, enumerava as capitais provinciais do antigo ultramar e lia correspondência de Moçambique. O que andámos nós para aqui chegar. Ao princípio, a ideia do regime era começar tudo de novo. Não apreciava fado, mas canções de “intervenção”. Não gostava de futebol, mas de atletismo. Não queria África, mas a Europa. O futebol e o fado voltaram logo. E depois foi a vez do império, em versão de fraternidade histórico-linguística. Perdido o imaginário europeu, o regime volta ao velho imaginário da ditadura salazarista. Até o hino do momento transpira atavismo: “a minha casinha” é interpretada pelos Xutos e Pontapés, mas nem por isso deixa de ser a canção de Milú de 1943. E para que nada falte ao ambiente retro, temos até as acusações de traidor à pátria, com Catarina Martins, no debate do Estado da Nação, a insinuar que quem não é pelo governo “torce” pela Alemanha (que jeito que teria dado uma final contra a Alemanha). Se o presidente for a Fátima, a geringonça também irá atrás? É o único F que falta daquela trilogia tradicional (Fado, Futebol e Fátima) que tanta urticária causava aos profissionais do progressismo.
“Hoje temos mais razões para acreditarmos em nós”, disse o presidente da república. O futebol, esta história que nos contam dos miúdos pobres de que os clubes fazem milionários, serve para tudo. Serve para lições motivadoras. Serve para muita gente discorrer sem fim, nomeadamente sobre crença e sacrifício. Serve para vinganças imaginárias, como a que teremos exercido sobre a França, onde os nossos emigrantes, segundo o presidente, “dormiam no chão”. Mas serviu também, por um dia, para os oligarcas fingirem que têm ainda a ver com uma história que já lhes escapou.
O governo e a sua maioria têm neste momento uma única ideia: fingir que todas as dificuldades do país são apenas resultado de causas externas e prova do rigorismo nórdico. Não são: são a medida do seu fracasso, e do fracasso do seu regime. Porque os nossos oligarcas, ao contrário da selecção, falharam. E no momento da derrota, agarram-se ao que podem: de um lado, esforçam-se por arrancar mais uns tostões à Alemanha, para pagar os défices; do outro, especulam com as emoções do futebol, para se fazerem populares. Como é costume nestes casos, a verdade é sempre a primeira baixa e a dignidade é a segunda.
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