Lixo, tesouros e fidelidade

Filipe d'Avillez
Depois de duas semanas de Papa Francisco vou cometer o atrevimento de comentar o seu pontificado. Faço-o ciente de que estou a falar de Pedro, o homem escolhido por Jesus para guiar a sua Igreja.
Este Papa entusiasma-me. Como ficar indiferente àquela imagem do abraço e do beijinho que deu ao rapaz deficiente profundo no Domingo de Páscoa?! Se me pedirem amanhã para definir o Cristianismo numa só imagem vou buscar aquela. Sem tirar nem pôr.
A sua capacidade para surpreender com estes gestos é fenomenal e é algo de que a Igreja precisa.
Obrigado!
Então porque é que dou por mim tantas vezes a suspirar quando vejo mais uma notícia sobre o Papa? Em parte porque sou um chato conservador, ou um legalista, como alguém me disse hoje. Mas não o sou só porque sim, sou-o porque olho para a Igreja e vejo que tem dois mil anos de riqueza e sinto-me, legitimamente, herdeiro dessa riqueza.
A Igreja é um edifício, construído sobre uma rocha, que é Pedro, e construído por Jesus. É o meu edifício, porque é a minha casa. Tal como a casa dos meus pais, onde cresci, está repleta de ornamentos e bugigangas que o meu pai sempre recusou deitar fora. Para alguns são lixo, mas cada um conta uma história e essa história ajuda a compreender aquela casa, o que se passou com ela, as dificuldades porque passou, onde se formou, como se formou, como se tornou o que é hoje e como nos molda.
Por isso custa-me quando aparece alguém que decide deitar fora esses ornamentos, mesmo os que menos parecem interessar. (Sou como o meu pai, nesse aspecto, onde uns vêem lixo eu vejo tesouros... quem mais sofre com isso é a minha mulher.) Cada ornamento que deitam fora é menos uma ligação que eu tenho ao meu passado, aos meus pais, aos meus avós...
Os sapatos encarnados são mais importantes que a mensagem de Cristo? Faz alguma diferença se o Papa lava os pés a mulheres ou a homens? Claro que não!
O quadro do meu antepassado irlandês que está na entrada da casa dos meus pais é o que mantém a casa de pé? As centenas de bilhetes de jogos de futebol que eu guardo cuidadosamente num dossier são a alma da minha casa? Não, claro que não. Mas se os deitarem para o lixo é uma parte da mim que desaparece, é uma ligação ao meu passado que cortam. E eu sinto-me mais pobre por isso. Sou sentimentalista, o que é que querem?
E por isso é natural que os outros sentimentalistas que por aí andam, como eu, estejam nesta altura um bocado desnorteados. Não é porque confundimos o essencial com o acessório (embora também os haja), é porque achamos que mesmo as coisas acessórias têm algum valor e mesmo que aceitemos que as tirem da casa, não gostamos de as ver tratadas como lixo.
Feito este desabafo, concluo. Obrigado Papa Francisco pelas palavras de sábado à noite, na vigília pascal. Terá sido a pensar em mim que disse estas palavras?

"Porventura não se dá o mesmo também connosco, quando acontece qualquer coisa de verdadeiramente novo na cadência diária das coisas? Paramos, não entendemos, não sabemos como enfrentá-la.

Frequentemente mete-nos medo a novidade, incluindo a novidade que Deus nos traz, a novidade que Deus nos pede. Fazemos como os apóstolos, no Evangelho: muitas vezes preferimos manter as nossas seguranças, parar junto de um túmulo com o pensamento num defunto que, no fim de contas, vive só na memória da história, como as grandes figuras do passado.

Tememos as surpresas de Deus. Queridos irmãos e irmãs, na nossa vida, temos medo das surpresas de Deus! Ele não cessa de nos surpreender! O Senhor é assim."

Sim. Frequentemente temo a novidade. Não gosto. Sou assim.
Mas confio em Pedro, Sua Santidade. Confio em si e vou consigo até onde for preciso, mesmo que isso implique esvaziar a casa de todos os tesouros/lixo que ela tem, desde que não mexa nas fundações e nos pilares. Nem que seja preciso ficar sem tecto, exposto às intempéries, sem nada a que me agarrar se não àquela rocha. A sua rocha.
Cuide das suas ovelhas. Lembre-se que as há de várias formas e feitios.

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