Audiências vs. Audições e a "PPP" dos livros escolares
Gosto de palavras. Dou-lhes, antes de mais, um "valor facial" e é pela percepção mais simples que me guio. Em princípio, as palavras são seres confiáveis, mesmo quando utilizadas por seres menos confiáveis.
Uso a palavra "audiência" sobretudo no plural: as "audiências de um programa televisivo" são as percentagens das pessoas que teriam o televisor ligado a transmitir o programa de televisão, quer o estivessem verdadeiramente a ver e ouvir, quer não.Não desconheço que, fora os significados particulares no contexto jurídico, a mesma palavra "audiência", assim no singular, é o acto praticado por uma autoridade quando recebe formalmente uma ou mais pessoas que pretendem dirigir-lhe uma comunicação presencial.
Já "audição" não é a demonstração de uma disposição para receber quem quer ser ouvido, será mesmo o uso dos ouvidos, é ouvir activamente. Quando se usa activamente a faculdade de ouvir, poderá então falar-se de auscultar ou pelo menos de escutar.
São assim as palavras, chãs... Como as que compõem o nome dado ao Grupo de Trabalho criado já em 2013, no âmbito da 8ª Comissão Parlamentar, por iniciativa do deputado poeta Miguel Tiago aprovada por unanimidade, onde pontifica a ex-ministra Gabriela Canavilhas: "Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico", e "acompanhamento" é escolta, assistência, séquito, guarnição, ir a par em harmonia.
Aqui, as palavras antagonizam as expectativas geradas, em particular quando se atenta no calendário de actividades deste Grupo de Trabalho, separadas por "audiências" e "audições" (ver imagem da Internet): na tabela das "audiências", aglomeram-se nomes de pessoas que contestam o autodenominado "acordo ortográfico" (AO) e pediram para ser ouvidas; na das "audições", está um rol de pessoas a auscultar, as quais têm em comum posicionarem-se favoravelmente quanto a esse assunto, terem sido convidadas, e estarem a ganhar dinheiro (algumas, mesmo muito dinheiro) com a aplicação desconchavada desta aberração linguística.
Pessoas como Vasco Graça Moura, a Professora Helena Buescu, o Professor Vasconcelos e Sousa, o Professor Rui Duarte, o jornalista Nuno Pacheco, etc. pediram para ser ouvidas. As audiências foram "concedidas" a estes cidadãos, informa a tabela das "audiências" (na outra não há concessões, mas há menção aos títulos académicos e aos cargos, com pompa e circunstância - outra diferença notória que havia, agora "mitigada" pela inclusão de última hora de uns títulos académicos "ad hoc"...), e o Grupo de Trabalho foi visitado. Presume-se que estes visitantes, como não o utilizam, não lucram com o AO, nem perderiam dinheiro com a sua desaplicação - excepto enquanto contribuintes, claro. Muito menos perderiam prestígio.
Carlos Reis, para quem Angola "mais tarde ou mais cedo, vai ter mesmo de adoptar o AO" (PÚBLICO, 09/01/2013), foi convidado e ouvido por videoconferência, nalgum intervalo das suas múltiplas "atividades" lucrativas relacionadas com o AO.
O Grupo Porto Editora integra sob denominações variadas um imenso segmento da edição de livros escolares (Porto Editora, Areal Editores, Raiz/Lisboa Editora, Livraria Arnado, Plural-Angola, Plural-Moçambique) e ainda outras editoras adquiridas (Assírio & Alvim, Grupo Bertrand [Bertrand Editores + Quetzal + Pergaminho + Temas e Debates + Contraponto + Arteplural + Gestão Plus + Círculo de Leitores + 11/17], Albatroz, Ideias de Ler, Sextante Editora, 5 Sentidos). Este e outro mega-grupo editorial - o Grupo Leya - partilham entre ambos o que é hoje o monopólio do mercado dos livros escolares em Portugal, um mercado que movimenta largas dezenas de milhões de euros anuais.
O administrador do Grupo Porto Editora, Vasco Teixeira, foi recebido em "audição" - a primeira "unipessoal", entre as dez audiências e audições realizadas até à data -, referiu custos relacionados com o AO esquecendo-se de referir lucros, e disse uma frase que sintetiza o seu contributo junto dos deputados: "Nós fomos contra o acordo até ao momento em que o acordo foi oficial" (sic).
Seguiram-se nas "audições", em comitiva do ILTEC (Instituto de Linguística Teórica e Computacional), os fazedores e refazedores dos instrumentos oficiais da aplicação do AO que não o cumprem, os tais de quem Vasco Teixeira se havia lá queixado por mudarem palavras a torto e a direito, por corrigirem permanentemente o "AO" sem disso se dignarem dar conta às editoras... (Já o Jornal de Angola se referiu, em editorial de Fevereiro de 2012, ao "difícil comércio das palavras"... Quem as faz e refaz, quem as patenteia, quem as vende, quem as compra?)
Entretanto, surgiu a informação de que há uma verdadeira "PPP" (parceria público-privada) entre o Ministério da Educação e os editores de livros escolares. Há um documento algures sob uma espessa sombra que explicará ensurdecedores silêncios.
Entre a Resolução do Conselho de Ministros nº 8/2011 (de Janeiro) e o início do primeiro ano lectivo subordinado ao AO (2011-2012) decorreram menos de 8 meses. Só os grandes grupos editoriais conseguiram adaptar livros "a tempo", com mudanças dos programas de Língua Portuguesa e de Matemática que até coincidiram, muitas pequenas editoras ficaram pelo caminho, muito se lucrou.
Mas, quando este processo for invertido, o Ministério da Educação estará obrigado a "indemnizar regiamente" (cito) estes grandes grupos editoriais, independentemente do quanto lucraram, da concorrência que cilindraram, e sobretudo do papel decisivo que tiveram enquanto lobby nesta triste telenovela mexicana...
Ganham muito ou ganham muitíssimo, e esta não é mais uma variação sobre um tema habitual, o das "PPP", aqui há uma indiferença às grandes vítimas - os alunos - que choca ao ponto de se poder falar, no cerne da questão do AO, de um acordo pornográfico entre as editoras e o Ministério da Educação chefiado por Isabel Alçada.
Esta revelação elucida melhor o desconcertante "acordismo desacordista" de Vasco Teixeira, administrador do Grupo Porto Editora, ouvido em "audição" na AR, tornando coerente a iniludível indiferença ao assunto em apreço e à missão social e civilizacional da actividade comercial que desenvolve. A esta luz, deixou até de causar estranheza a displicência acrítica com que referiu ter o hábito de escrever sem acentos (defendeu de passagem, aliás, a abolição dos acentos graves), ou a tranquilidade olímpica com que fez gala de desconhecer a grafia de Gil Vicente...
(Defendamos os nossos filhos de um País assim, defendamo-los de nós mesmos que consentimos este despudorado império da "mediocracia", pobres filhos!)
Dirigi, no passado dia 8 de Janeiro, um Requerimento aos Ministros da Educação e dos Negócios Estrangeiros, em resposta a um silêncio de Nuno Crato que remonta a Abril de 2012, solicitando a apresentação de documentos do dossier nacional e internacional sobre o AO. Largamente ultrapassado o prazo que a lei impõe à resposta, e dado o risco de intimação judicial para o mesmo efeito, recebi há três semanas comunicação telefónica de um assessor de Paulo Portas informando que, por acordo entre os senhores Ministros, a resposta conjunta ao Requerimento irá ser dada em breve por Nuno Crato.
Três dias depois deste telefonema, quase achei graça à notícia de que o Ministro da Educação, em visita oficial ao Brasil, evitou perguntas sobre o AO dizendo aos jornalistas ser esse "um assunto sobretudo da área dos Negócios Estrangeiros" (SIC-Notícias, 18/03/2013).
Voltando ao Grupo de Trabalho cujo trabalho espero não seja "para lamentar", consultei o Regimento da Assembleia da República (AR) e não me espantei. A palavra "audiência" não mora lá, cada um disponha do seu tempo como queira, assim haja benevolência e espaço em agenda. Já "audição" e "audições" são palavras que aparecem dezassete vezes no Regimento da AR (consultável no separador "Legislação" do sítio da AR na Internet). Não é de estranhar que na AR se brinque com as palavras, é precisamente disso que se trata.
Além de brincar com palavras, creio que também brincam com pessoas. O que poderá justificar que o administrador do Grupo Porto Editora tivesse o "tempo de antena" de uma audição "unipessoal", enquanto outros, infinitamente mais credenciados, são agrupados em audiências a três ou a quatro, dispondo de poucos minutos para fundamentar as suas posições? O mesmo estava previsto para o representante do subsidiadíssimo "Ciberdúvidas" mas, ao ser denunciada em nota de imprensa esta discriminação, incluiram pela primeiríssima vez um opositor do AO numa audição, essa mesma, a quinta, e lá foi um senhor de quádrupla nacionalidade que representa uma Fundação "Geolíngua" de quem poucos terão ouvido falar...
Em Itália, chamam "portugueses" às pessoas que participam das festas sem convite, e isso data do séc. XVI, da embaixada de D. Manuel ao Papa, em que os italianos se faziam passar por portugueses para poder usufruir das faustosas festividades... Em Portugal, a Língua Portuguesa será um "português" (na acepção italiana) tentando entrar na AR sem ser convidada?
Médica, escritora e activista cívica
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